quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Para a História da Cultura em Portugal. António José Saraiva. O Português e o Universalismo. «O iniciador e patriarca deste folclorismo, o primeiro entusiasta da literatura nacional, popular, genuína e espontânea como as flores, mais eruditos, mais produto literário de que há memória em Portugal. Garrett»

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O Português e o Universalismo
«(…) Quer isto dizer que eu afirmo, contra Castelo Branco Chaves, a existência de um génio universalista português? Outro mito! Outro D. Sebastião! Não afirmo nem nego nada disto. Quero dizer apenas o seguinte: o mundo é uma coisa inteligível, um sistema de relações; a inteligibilidade é a universalidade das leis, e, sob pena de negar a própria inteligibilidade, a própria universalidade, eu não posso desistir de encontrar uma explicação para todas as coisas, não posso negar, num caso particular, a inteligibilidade universal; e também não posso pôr limites à minha iniciativa, que a inteligibilidade torna possível. Apenas digo que os Portugueses não podem ser um recanto escuro, uma falha na inteligibilidade do Universo, e denuncio como insuficientemente lógica e insuficientemente humana qualquer doutrina que o afirme.
Posto isto, apenas tenho a agradecer a Castelo Branco Chaves o prazer que me deu o seu artigo, pela lucidez que me permitiu, baseando-me em parte dele, contestar a outra parte, e também pela coragem com que, deixando na insignificância do seu sossego as ridículas circunstanciazinhas acessórias, pôs o problema do universalismo do povo português». In Litoral, nº 3

Para uma Sociologia da Literatura Portuguesa
Muitos críticos portugueses se têm deixado impressionar pela separação e impermeabilidade, em Portugal, da literatura culta e da literatura popular; para falar com mais propriedade: do escritor e da massa da população. Os românticos fizeram desta questão um cavalo-de-batalha; e Garrett procurou, no Romanceiro e em outras obras, ressuscitar uma literatura popular, criar uma consciência literária nacional, étnica, folclórica. A língua escrita, nas mãos do mesmo Garrett, pretende aproximar-se do português falado, conservando, aliás, certo sabor quinhentista, dir-se-ia que para manter um carácter histórico, tradicional, superior à contingência do tempo. Nas Folhas Caídas a poesia é moldada em metros simples, frequentemente na tradicional redondilha.
Esta tentativa de Garrett achou continuidade na vasta obra de Teófilo Braga, que é o verdadeiro teorizador e crítico encartado do romantismo tal como Garrett o concebera. Todos sabem como o preconceito etnológico vicia a obra de Teófilo. Nos seus primeiros livros leva este preconceito a atitudes extravagantes, como a de condenar, em nome de uma tradição literária genuinamente nacional, toda a literatura latinizante e mais ou menos erudita, que a teria feito desaparecer quase sem vestígios. Esta conclusão do critério etnológico é caricatural e põe bem à mostra a sua inanidade e falta de fundamento. Toda a literatura portuguesa, notou Antero, é condenada, em massa, por esta noção de que há uma literatura genuinamente nacional e uma outra culta, clássica, e espúria. Aplicado à literatura portuguesa, o critério etnológico dá fracas provas.
E, por outro lado, é para considerar este caso interessante: o iniciador e patriarca deste folclorismo, o primeiro entusiasta da literatura nacional, popular, genuína e espontânea como as flores, é, afinal, um dos escritores mais cultos, mais clássicos, mais factícios, mais compostos, mais eruditos, mais produto do savoir faire literário de que há memória em Portugal. Garrett faz prosa falada com a mesma facilidade com que faz verso arcádico. Quando é preciso também faz linguagem quinhentista (no frei Luís de Sousa), e com um êxito que tem entusiasmado os filólogos. Inclusivamente fez, também, inventou, até certo ponto, corrigiu e imitou romances populares, com aquele sentido de composição que era, juntamente com uma extraordinária plasticidade, um dos seus melhores dotes.
Contradição edificante. A valorização da literatura folclórica nacional é iniciada por um dos nossos mais clássicos e mais artificiosos escritores; e, colocada no plano da crítica erudita, conduz à eliminação, praticamente, de toda a literatura portuguesa cujo interesse não seja restritamente local. Mas nem por isso deixa de ficar de pé aquele facto contra o qual os românticos lutaram sem resultado: a sequestração dos escritores em relação à massa da população; a impermeabilidade de duas literaturas: a literatura culta, de interesse universal (quando o tem), e uma literatura regional, quase inexistente, cuja vida não ultrapassa os limites do concelho ou da província.
Garrett tentou universalizar certos temas da literatura local, como o de S. Frei Gil, à semelhança do que sucedera com a lenda do Dr. Fausto, universalizada por Goethe. Todos sabem como a tentativa se malogrou: o S. Frei Gil de Garrett não é mais que um fantoche convencional, pretensamente macabro, produto de imitação. E, mais tarde, o S. Frei Gil de Eça não passa de um exercício de estilo». In António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, o Português e o Universalismo, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-459-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT