O Português e o Universalismo
«(…) Quer isto dizer que eu afirmo, contra Castelo Branco Chaves, a
existência de um génio universalista
português? Outro mito! Outro D. Sebastião! Não afirmo nem nego
nada disto. Quero dizer apenas o seguinte: o mundo é uma coisa inteligível, um
sistema de relações; a inteligibilidade é a universalidade das leis, e, sob
pena de negar a própria inteligibilidade, a própria universalidade, eu não
posso desistir de encontrar uma explicação para todas as coisas, não posso negar,
num caso particular, a inteligibilidade universal; e também não posso pôr
limites à minha iniciativa, que a inteligibilidade torna possível. Apenas digo
que os Portugueses não podem ser um recanto escuro, uma falha na
inteligibilidade do Universo, e denuncio como insuficientemente lógica e
insuficientemente humana qualquer doutrina que o afirme.
Posto isto, apenas tenho a agradecer a Castelo Branco Chaves o prazer
que me deu o seu artigo, pela lucidez que me permitiu, baseando-me em parte
dele, contestar a outra parte, e também pela coragem com que, deixando na
insignificância do seu sossego as ridículas circunstanciazinhas acessórias, pôs
o problema do universalismo do povo português». In Litoral, nº 3
Para uma Sociologia da Literatura Portuguesa
Muitos críticos portugueses se têm deixado impressionar pela separação
e impermeabilidade, em Portugal, da literatura culta e da literatura popular;
para falar com mais propriedade: do escritor e da massa da população. Os
românticos fizeram desta questão um cavalo-de-batalha; e Garrett procurou, no Romanceiro e em outras obras,
ressuscitar uma literatura popular, criar uma consciência literária nacional,
étnica, folclórica. A língua escrita, nas mãos do mesmo Garrett,
pretende aproximar-se do português falado, conservando, aliás, certo sabor
quinhentista, dir-se-ia que para manter um carácter histórico, tradicional, superior
à contingência do tempo. Nas Folhas
Caídas a poesia é moldada em metros simples, frequentemente na tradicional redondilha.
Esta tentativa de Garrett achou continuidade na vasta obra de Teófilo
Braga, que é o verdadeiro teorizador e crítico encartado do romantismo tal
como Garrett o concebera. Todos sabem como o preconceito etnológico
vicia a obra de Teófilo. Nos seus primeiros livros leva este preconceito
a atitudes extravagantes, como a de condenar, em nome de uma tradição literária
genuinamente nacional, toda a literatura latinizante e mais ou menos erudita,
que a teria feito desaparecer quase sem vestígios. Esta conclusão do critério
etnológico é caricatural e põe bem à mostra a sua inanidade e falta de
fundamento. Toda a literatura portuguesa, notou Antero, é condenada, em
massa, por esta noção de que há uma literatura genuinamente nacional e uma outra
culta, clássica, e espúria. Aplicado à literatura portuguesa, o critério
etnológico dá fracas provas.
E, por outro lado, é para considerar este caso interessante: o iniciador
e patriarca deste folclorismo, o primeiro entusiasta da literatura nacional, popular, genuína e espontânea
como as flores, é, afinal, um dos escritores mais cultos, mais clássicos, mais factícios,
mais compostos, mais eruditos, mais produto do savoir faire literário de que há memória em Portugal. Garrett
faz prosa falada com a mesma facilidade com que faz verso arcádico. Quando é
preciso também faz linguagem
quinhentista (no frei Luís de Sousa),
e com um êxito que tem entusiasmado os filólogos. Inclusivamente fez, também, inventou, até certo ponto, corrigiu
e imitou romances populares, com aquele sentido de composição que era, juntamente
com uma extraordinária plasticidade, um dos seus melhores dotes.
Contradição edificante. A valorização da literatura folclórica nacional
é iniciada por um dos nossos mais clássicos e mais artificiosos escritores; e,
colocada no plano da crítica erudita, conduz à eliminação, praticamente, de
toda a literatura portuguesa cujo interesse não seja restritamente local. Mas
nem por isso deixa de ficar de pé aquele facto contra o qual os românticos
lutaram sem resultado: a sequestração dos escritores em relação à massa da
população; a impermeabilidade de duas literaturas: a literatura culta,
de interesse universal (quando o tem), e uma literatura regional, quase
inexistente, cuja vida não ultrapassa os limites do concelho ou da província.
Garrett tentou universalizar certos temas da literatura local, como
o de S. Frei Gil, à semelhança do que sucedera com a lenda do Dr. Fausto,
universalizada por Goethe. Todos sabem como a tentativa se malogrou: o
S. Frei Gil de Garrett não é mais que um fantoche convencional,
pretensamente macabro, produto de imitação. E, mais tarde, o S. Frei Gil de Eça
não passa de um exercício de estilo». In António José Saraiva, Para a História da
Cultura em Portugal, o Português e o Universalismo, Gradiva Publicações,
Lisboa, 1996, ISBN 972-662-459-2.
Cortesia de Gradiva/JDACT