sábado, 5 de outubro de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Partiu-se das Canárias de Tenerife e foi demandar o Cabo-Verde, d'onde atravessou á costa do Brasil, e foi entrar n'um rio que se chama Janeiro…»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Dêmos a palavra ao incorrecto chronista das Lendas, para lhe ouvirmos narrar, em sua rude mas pittoresca linguagem, as coisas da expedição desde que largou das costas hespanholas até ao ponto da conjuração. A qual armada concertada com a gente paga por seis mezes, partiu de San Lucas (San Lucar) de Barrameda em Agosto do anno de 1519. Com que navegou ás Canárias e fez aguada. Onde estando lhe chegou um barco com cartas de seu sogro, em que lhe dava aviso que tivesse em sua pessoa boa vigia, porque tinha sabido que os capitães que levava disseram a seus amigos e parentes, que se elle os anojasse que o matariam e se levantariam contra elle. Ao que lhe respondeu que elle lhes não fazia aggravos porque elles tivessem razão de o fazer; que por isso elle os não fizera, mas os regedores lh'os deram, que os conheciam; que, bons ou maus, elles trabalhariam por fazer o serviço do imperador, que a isso ofFereceram a vida. A qual resposta o sogro mostrou aos regedores, que muito louvaram o coração de Magalhães.
Partiu-se das Canárias de Tenerife e foi demandar o Cabo-Verde, d'onde atravessou á costa do Brasil, e foi entrar n'um rio que se chama Janeiro… E d'aqui foram navegando até chegarem ao cabo de Santa Maria, que João de Lisboa descobrira no anno de 1514, e d'aqui foram ao rio de S. Julião, onde estando tomando agua e lenha João de Cartagena, que era sota capitão-mór, se concertou com os outros capitães que se levantassem, dizendo que o Magalhães os levava enganados e vendidos. E porque elles entendiam que o Gaspar de Quesada era amigo do Magalhães, o João de Cartagena se metteu no seu batel, de noite, com vinte homens e se foi á nau de Gaspar Quesada e entrou a falar com elle, e o prendeu, e fez capitão da nau um seu parente, para logo todos três irem abalroar o Magalhães e o matarem. E logo renderiam a outra nau de João Serrano e tomariam o dinheiro e fazenda, que esconderiam, e se tornariam ao imperador, e lhe diriam que o Magalhães os levava vendidos e enganados, fazendo traição a seus regimentos, porque ia navegando pelos mares e terras d'el-rei de Portugal: do qual feito primeiro haveriam seguro do imperador. Com que se ordenaram na traição, que lhe saiu mal.
Usou Fernão de Magalhães de extrema severidade para com os capitães, que se haviam alevantado contra elle e andavam apostados para o matar. Foi summarissimo o processo, com que os sentenciou a pena capital, porque nem houve sequer allegação, antes sem que n'isso cuidassem, nem houvesse tempo para prevenções, os salteou em seus navios e fez n'elles justiça cruelissima. Porque a Luiz de Mendonça o colheu á traição, e em sua mesma caravella o degolou com uma adaga (segundo conta Gaspar Corrêa), o meirinho Ambrósio Fernandes, com quem se concertara para este effeito o capitão-mór. E chegando Magalhães á nau de Luiz de Mendonça, com a gente armada e artilheria prestes, elegeu para capitão a Duarte Barbosa, homem portuguez seu amigo, e mandou enforcar nas vergas seis homens, que se alevantaram contra o meirinho, e pendurar pelos pés o corpo de Mendonça que o vissem das outras naus. Veiu depois Fernão de Magalhães junto da caravella de João de Cartagena, e por ardil de que usou para evitar um recontro, onde poderia derramar-se muito sangue, entrou na embarcação e ao Cartagena prendeu e mandou esquartejar com pregão de traidor; e elegeu por capitão a Álvaro de Mesquita, que o rebelde castelhano tinha preso em ferros, porque o reprehendeu do alevantamento que fazia.

É muito para acreditar que os hespanhoes, de que pela maior parte se compunha a tripulação, tivessem ojeriza ao capitão-mór, porque sendo portuguez, posto que homem principal e promotor da expedição, recebera o governo d'aquella empresa. O que já succedêra com o genovez Colombo, agora com maior rigor e desacato á autoridade de que ia revestido, o intentaram os rebeldes capitães contra Fernão de Magalhães. Já muito de antemão iam os castelhanos apparelhados para a desobediência e rebellião, como claramente o patenteavam as cartas recebidas pelo Magalhães em Tenerife. Não era apenas a vida que o ilustre portuguez havia de perder, se chegasse a vingar a sedição dos hespanhoes. Era a própria empresa em que se empenhava, e a gloria que já sonhara para si, e os loiros immortaes de ousado aventureiro e de feliz descobridor. Dissimular a conjuração e esperal-a resoluto, era dar a victoria segura aos inimigos. Reprehender nos sediciosos o mau feito que intentavam, e oppor o prestigio moral da autoridade á força material dos conspiradores, era arriscar-se a ver desacatada a auctoridade de sua pessoa, e entregar, com resignação de bom christão, mas com imprevidência de mau soldado, a cabeça ao ferro dos conjurados, e a idéa ao desamor e desamparo de quem tinha delineado trocar a gloria própria, e o serviço do imperador, por alguns punhados de oiro, com que se volveria á pátria». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT