Um toledano diferente dos outros
«(…) Foi então que escrevi o Kitab Tabaqat al-Uman, o livro das
gerações das nações, fruto das minhas meditações sobre esses esquemas da ciência.
Nele explicava por que razão a Toledo onde eu vivia podia ser comparada com a Atenas
de Péricles ou com a Bagdad abássida de al-Mansur. Nessas cidades, a
tinta do aluno era mais sagrada do que o sangue do mártir. Toledo, Atenas,
Roma, Constantinopla, Cairo pertencem a um mesmo clima que favorece a
reflexão e o estudo; estão igualmente distanciadas do calor que atrofia a inteligência
e das brumas do Norte que a obscurecem. O desastre que representou para nós a
queda de Toledo, embora tenha sido um rude golpe para o Islão, não impediu que
a ciência continuasse a progredir ao longo dos séculos XII e XIII cristãos. O
impulso estava dado, e agora vinham de toda a Europa procurar o saber nesses
textos herdados da biblioteca de
al-Hakem II e em obras posteriores. Apenas restava traduzi-las. Foi
essa a ocupação de monges cristãos, sábios judeus e de alguns dos nossos que
colaboraram nessa tarefa. Pelo meu lado, apenas voltava episodicamente a Toledo
apesar das grandes satisfações que me proporcionavam as trocas de informações
com um ou outro sábio judeu ou cristão. Mas, para mim, o mundo desabara em 477 (1085). Daí para a frente, Toledo deixara de ser a minha cidade,
deixara de ser o meu universo.
Tive a tristeza de ver destruir o quiosque de cristal de al-Ma'mun
quando os Almorávidas, vindos
de novo de África para deter o avanço cristão, tentaram retomar a cidade. Mas,
bastante mais tarde, tive também uma grande satisfação: a de ver que as nossas Tábuas
Toledanas eram traduzidas e depois ampliadas e comentadas pelo rei
Afonso X. Passariam a chamar-lhes, daí em diante, as Tábuas do Rei Afonso.
Esta alteração de autoria não me provocou qualquer amargura. Voltava a Toledo,
de longe em longe, vindo de Granada onde agora me instalara, para negociar a venda
de alguns manuscritos preciosos de que os cristãos tinham especial necessidade.
Tinha uma autorização permanente que me permitia deslocar-me de Granada, muçulmana,
para Toledo, cristã. Neste momento preciso, uma recordação se me impõe
acima de todas as outras, a do meu amigo Nathan a cujo respeito desejaria
evocar agora uma conversa que tivemos durante uma dessas visitas.
Nesse dia, perguntei pois ao judeu Nathan qual era, segundo ele, a lei
que lhe parecia mais luminosa. Sorriu e com única resposta, contou-me esta
história muito bela: Há séculos, vivia no
Oriente um homem que possuía um anel de valor incalculável. Não que fosse de um
metal precioso, mas tinha o poder secreto de tornar agradável a Deus e aos homens
quem quer que o usasse. Transformava aquele que o detinha no chefe incontestado
e venerado de toda a gente. Quando morreu, o homem legou o anel ao seu filho
preferido que, por sua vez, o transmitiu àquele que fora escolhido para futuro
chefe da casa. De geração em geração, o anel acabou por chegar às mãos de um
pai de três filhos que não conseguia resolver-se a escolher um deles, porque os
amava a todos igualmente, e teve mesmo a fraqueza de o prometer a cada um
deles. Sentindo chegar o seu fim, chamou secretamente o seu vizinho Mardoqueu,
o ourives, e encomendou-lhe outros dois anéis em tudo iguais ao primeiro; o
artesão conseguiu fazê-los tão bem que o próprio pai foi incapaz de distinguir
qual era o original. Chamou cada um dos seus filhos e, sem testemunhas, deu um anel
a cada um. Quando o pai morreu, cada um dos três filhos exibia o sinal da
autoridade e apresentava-se como o escolhido. Espanto geral! É impossível
provar qual é o verdadeiro anel e os três filhos pretendem legitimamente
dirigir a casa comum. E Nathan concluiu: Também nós, judeus, cristãos, muçulmanos, provimos de uma descendência
comum mas encontramo-nos na impossibilidade de provar hoje em dia qual é a
verdadeira fé. Nathan, disse-lhe, a partir de hoje, apenas te chamaremos Nathan, o sábio.
Em Granada, depois dos Almorávidas, cujo rigorismo se me tornou
insuportável, vi chegar outros africanos, os Almóadas. Depois, o destino
da cidade tomou uma nova direcção quando uma nova dinastia, a dos Nasridas, reorganizou o reino. Durante
esse tempo, em Toledo, os cristãos não se limitavam a traduzir as nossas obras
e organizavam campanhas militares: em 633
(1236) tomaram Córdova, em 646 (1248), Sevilha». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII,
Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a Tolerância,
Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT