A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) D. Isabel, naquele estado de espírito para que muitas vezes as
preocupações mortais nos arrastam, confusamente olhava a miniatura, os rostos
barbados dos pastores hebreus, as ovelhas brancas, o cão em tons quentes, quase
vermelho, as belas árvores desenhadas em triângulo, pinheiros do Norte, e o castelo
de fundo, tipicamente francês, com os telhados azuis e os altos pináculos de
cerâmica que encimavam a cobertura das torres pontiagudas onde se abriam belas
janelas de vidros pequeninos, alguns de vitral. O livro, trouxera-o um seu familiar
de França e enviara-lho, com dois belos crucifixos, um deles contendo a
relíquia sagrada, uma esquírola da Cruz do Senhor. Mas o poeta Deschamps, cuja
obra tanto fora lida pela sua mãe e avó e de que a biblioteca dos Urgel possuía
várias cópias que seu pai mandara fazer a um copista e confessor, frei
Guillaume, morto de peste, escrevera mais:
Temps de douleur et de temptacion
Aages de plour, d'envie et de tourment,
Temps de langour et de dampnacion…
Era profético como o são os poetas. Em todas as épocas acontece, mas
com ela e naquele momento representava a tragédia que lhe ia destruir o destino,
a casa, tudo o que protegera e amara, tudo pelo que lutara ao casar-se com
aquele homem que já percorrera parte do mundo e ainda não tinha trinta anos e
que ela apenas vira uma vez antes do matrimónio se efectuar por procuração,
depois do consentimento do rei Afonso V de Aragão (ela era filha de D.
Isabel, Infanta de Aragão, e de Jaime II de Urgel). Como procuradores de Pedro tinham sido Aires Gomes Silva,
depois senhor de Vagos e Regedor das Justiças, e o Estêvão Afonso, chanceler do
Infante e membro do seu Conselho. Por parte de D. Isabel, seu tio Berengário
Barutel, tutor e curador, a quem o rei de Aragão deu todo o poder e ainda, para
entrega, o dote de quarenta mil e novecentos florins de ouro de Aragão e
quatrocentos e quarenta e nove mil soldos barcelonenses. Para dar satisfação a
tudo o rei de Aragão hipotecara o Castelo de Alcolea e o Infante, por ordem do
pai João, assegurou-lhe por arras as vilas de Montemor-o-Velho e Tentúgal. A 13
de Setembro de 1428 o tratado assinava-se
e João I e o infante Duarte confirmaram-no ainda por carta de 20 de Março do
ano seguinte, embora João I nunca tivesse deixado de patentear uma profunda frieza
com relação à noiva do filho e ao casamento entre os dois, talvez prevendo
futuros conflitos entre as duas noras e as famílias de que eram as lídimas
representantes…
E agora tudo se esbatia e esboroava porque, como escrevera o poeta, tempo
de dor e de tentação, idade de lágrimas, de inveja e de tormentos, tempos de
desânimo e danação vinham para se instalar e ela não sabia que solução poderia
encontrar. Aliás, não podia resolver fosse o que fosse. Aquela derradeira noite
em Coimbra ditara em absoluto o futuro. Pedro
ou vencia ou seria vencido e escolheu ser vencido. D. Isabel, que trouxera o orgulho
da sua raça à raça de Aviz, recolhida na câmara, para que nem as sua aias a
vissem, voltou a rojar-se aos pés de Cristo e da Virgem, louca de apreensão e
não adivinhando que essa agonia duraria quinze longos dias e noites e que ainda
iria durar muitos anos depois disso. Não dissera Pedro, quando recebeu a carta da filha, que a morte começava jâ a bater às portas da minha vida? Ele não
afirmara que não permitiria que um filho de El Rei João I fosse desterrado ou
preso aos cinquenta e sete anos... E
porquê? Que tinha a ver com Portugal e o Reino português, que o pudesse
prejudicar, o seu sonho de Aragão?
Aquele garoto na Corte, indefeso, ingrato por fraqueza, inexperiente, não
estava a ver o real problema. Ele ordenara ao tio para ficar em Coimbra mas o
tio partira com seis mil homens que em breve, mesmo antes do fim de tudo, o
iriam, em grande número, abandonar... Aquela jornada de quinze dias foi alucinante.
Ele poderia ter ficado e fortificado em Coimbra, Penela, Montemor ou mesmo
perto do mar em Buarcos. E para quê?
O Rei não tinha forças suficientes para o cercar, mas que terrível seria o efeito!
O País todo em armas... O irmão Bragança não esperava outra coisa.
Podia também retirar sobre o Douro para coligar forças, depois desceria
às Beiras e ao Guadiana e juntar-se-ia às tropas do filho condestável... Álvaro
olhou-o, pousando nele aqueles olhos espertos que já tinham visto tudo, e
respondeu: para morrer, que seja honrado.
Recuso uma morte miserável, fruto de viver na mediocridade! Pedro assentou: Vamos a Santarém ouvir o rei, falar com ele. Explicar de que lado estão
as falsidades, os enganos, as intrigas. A catástrofe, essa, sabia-a
inevitável por experiência. Mas ia fazer o último acto da sua vida, aprendendo
ainda, observando, meditando, assistindo ao estendal de ódios, segredos e
acirrados conselhos que o rei foi
recebendo. Iria cansar aos seus inimigos, lentamente, conscientemente, para os
aquecer ao rubro. Creio que Pedro
fez das suas duas últimas semanas de vida o purgatório de expiação de toda a
sua existência». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II,
Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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