O Comércio do Invisível
«(…) Daqui tirou a pequena Leonor
Teles uma teoria geral da vida, que ia muito para além daqueles agentes que
o cónego de Braga lhe deixara como sementes. Primeira conclusão: a
existência que nós podíamos ver e conhecer com os olhos do corpo era uma
parcela ínfima da vida. Havia o mundo visível, constituído por tudo aquilo que
era perceptível pelos sentidos, pedras, plantas, animais e homens, e havia o
mundo invisível, num plano subtil e imaterial, que não era perceptível aos
sentidos físicos. Não se via; não se cheirava; não se tocava; não se ouvia; não
se degustava. E todavia estava lá, com cores, odores e sons. Bastava activar um
outro sentido, de natureza interior, para os perceber. A partir desse instante
os mundos imperceptíveis ganhavam uma realidade idêntica à da matéria. As
entidades desses mundos paralelos, para serem compreendidas na sua essência
profunda, podiam ser comparadas aos eventos dum sonho. Também neste tudo era
subtil e imaterial, apesar da realidade e da impressão de verdade com que se
apresentava. Segunda conclusão: os mundos invisíveis e o visível tinham
uma ordenação e uma continuidade entre si. Possível lhe foi organizar em grupos
os seres existentes, independentemente do plano de manifestação.
Antes de todos estavam os seres visíveis, os animais, as plantas, as
pedras e os homens. Depois vinham os seres que gravitavam em torno destes e só
deles se diferenciavam por não serem visíveis aos olhos corporais. Eram como
emanações psíquicas dos corpos materiais. Por um lado, viviam na dependência
dos seres visíveis, e por outro tinham uma liberdade de actuação própria.
Existiam numa esfera intermédia, muito próxima porém da corporeidade. Por isso,
em certas circunstâncias, sobretudo de isolamento e escuridão, os homens e as
mulheres tinham o pressentimento da sua existência, quando não, o sobressalto
terrível da sua visão. Estavam nessa categoria fadas, elfos, duendes e outros
minúsculos espíritos de plantas e pedras. E ainda monstros e orcos, que eram
emanações incorpóreas de animais ferozes, e fantasmas, que eram as exalações
espirituais dos homens e das mulheres que morriam. Uma minoria muito pequena
destas exalações libertava-se sem deixar vestígio para o mundo angélico,
enquanto a larga maioria delas ficava presa nesta esfera intermédia, mesmo por
cima da cabeça dos mortais, à espera de renascer num outro corpo ou tão-só de
vogar para a eternidade nestas ondas invisíveis, sem outra função que gemer e
gritar a sua dolorosa ignorância. Flutuavam estes seres numa assustadora névoa
de cinza.
A primeira vez que a jovem Leonor
focalizou este mundo invisível apavorou-se. Espíritos em multidão boiavam nesta
cinza sulfurosa, contorcendo-se cegamente como medusas transparentes que se
tocavam e repeliam umas às outras. De espaço a espaço, saíam do silêncio em que
vogavam e gemiam friamente como assustadoras aves nocturnos. Leonor estava na
capela do paço, ao lado da tia, preparando a celebração do dia seguinte, que
era um domingo, e não conseguiu evitar uma perturbação profunda. Apesar do
hábito que já havia naquele comércio com o invisível, a visão do oceano
cinerário, tão próximo da matéria do nosso mundo, foi bastante assustadora para
ela gritar. - Pardiez! Que é
de pavor este reino. Recompôs-se de imediato, mas não mais soube como se livrar
daquele horror de saber que mesmo por cima das pacatas existências dos
terrenos, ainda antes da atmosfera onde se formavam os nimbos e os cúmulos,
existia uma pavorosa região, densamente povoado de cinzas flutuantes, mortos
que continuavam afinal vivos, sem esperança de se libertarem daquelas ondas
sujas e limosas, a não ser pela encarnação num vaso de carne.
Depois destes seres invisíveis, que viviam todavia na dependência da
matéria sensível, vinham os seres mais longínquos, anjos e demónios, que só
intervinham no nosso mundo como emissários das duas grandes forças que governavam
os vários planos do universo, a Luz e a Escuridão. Viviam noutras esferas e
haviam sido criados muito antes dos seres terrenos e suas emanações invisíveis,
numa altura em que a guerra entre Deus e o Diabo não havia ainda adquirido a
luta aberta que depois, com a criação do homem e da mulher, tomou. Não pôde Leonor Teles deixar de ver que viver na
Terra, depois da chegada de Lilit, passara a ser um crime, como se existir
fosse tão-só matar e fazer sofrer. Para minorar a presença desse crime de viver
deixou Leonor Teles de comer qualquer
tipo de carne animal, de terra ou de água, até ao fim da vida, e se excepção
houve nunca dela correu notícia. Em seu lugar, comia toda a comida de origem
vegetal, crua ou cozinhada. E na sua cisma sobre este crime pensava muitas vezes que na Terra a vida só seria reconduzida
à essência gloriosa do seu princípio, ao momento primevo da criação, quando os
seres terrenos não mais tomassem do que ar por alimento. O mundo vegetal era o que
menos se afastara da dimensão perfeita do Paraíso inicial, mantendo-se próximo
daquilo que fora no tempo anterior à Queda. Admirava pois o reino
vegetal como aquele que melhor havia resistido à chegada do princípio invertido
à criação terrena. E no ar puro, rarefeito, carregado de frescura e
benevolência, via ela uma viração prodigiosa, que fora capaz de atravessar o
infinito deserto que separava hoje o mundo dos homens do mundo primeiro,
anterior à corrupção da carne. Essa aragem imponderável continuava a ter em si
o bastante para tornar imortal o corpo humano». In António Cândido Franco, Vida
Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT