Notícias do pesadelo
«(…) Em vésperas do fim do século, ai está ele, insidioso e perverso, o
pesadelo orwelliano sob aforma do triunfo dos porcos. Na sua História da Revolução Francesa,
Cadyle observa, quero crer que com algum desapontamento, como das revoluções,
sonhadas por utópicos e realizadas
por fanáticos, quem acaba sempre por
tirar proveito são os desavergonhados de todas as espécies. Hoje já não há
lugar para as revoluções, e muito menos para as utopias; é tempo, sim, de tirar
proveito, e depressa. A mediocridade e a vulgaridade ganharam em todas as
frentes. E os sonhos, anda há poucas décadas da desmesurada medida da
liberdade, da justiça, ou da paz, parecem hoje reduzidos, até entre os jovens,
de cuja imatura matéria sempre foram feitos os grandes sonhos das sociedades, ao tamanho mesquinho do BMW do cartão de
crédito e da carta de curso.
A assustadora estirpe dos homens práticos e dos técnicos instalou-se,
um pouco por toda a parte, nos mais secretos lugares do coração das nossas sociedades,
vampirizando a sua identidade e as suas forças e sujando o seu sangue mais
profundo. Os poetas foram expulsos da cidade e resistem, os que resistem e ainda
não se converteram também ao espectáculo industrial em que a arte e a cultura
se transformaram, em obscuras catacumbas interiores, celebrando
clandestinamente aos deuses caídos da esperança e da gratuitidade. Que futuro
pode ter uma sociedade sem esperança e
sem poesia? Uma sociedade em que a esperança se reduziu
progressivamente à mera sobrevivência individual e cujos valores se
personificam em modelos como Silvester
Stallone ou Madonna? Vejo a sanha com que os nossos líderes políticos e
os pivots dos telejornais espezinham
furiosamente os restos da tragédia em que descambou a utopia comunista e
pergunto-me se, neles, nesses terríveis destroços, eles odeiam os crimes do
socialismo real (o maior dos quais terá sido, provavelmente, o da traição à
utopia igualitária) ou se não é, antes, a própria ideia de utopia e de
esperança que, incapazes de compreender, eles sobretudo odeiam e perseguem.
Ouço-os grunhir vitoriosamente que o comunismo
acabou e fico certo de que é o humano, demasiadamente humano, ideal
comunista, insusceptível, como o ideal cristão, e todos os outros grandes
ideais, de ser reduzido aos seus números e às suas torpes estatísticas, que
eles profundamente temem.
E que nos oferecem eles em
troca? Comércio. Como se os homens pudessem viver, viver e não tão só sobreviver, de comércio, e como se as
sociedades pudessem, desde sempre, prescindir dos grandes sonhos irrealizáveis e
dos grandes mitos de que os poetas, e os artistas, e os filósofos, são a alma e
o corpo. Como disse o poeta, eles não sabem (nem sonham) que é o sonho, e não as cotações da bolsa, que
comanda a vida, e que pelo sonho é que vamos. E como não sabem, nem podem
saber, roubaram-nos o melhor que tínhamos, os sonhos, os ideais, os valores (até, tantas vezes, os meros e pouco
rentáveis escrúpulos), deixando-nos absolutamente sós fora de nós mesmos,
como mutantes desamparados e assustados errando na imensa selva do mais forte e
do mais velhaco.
Em Portugal, a metástase cavaquista do fenómeno contamina hoje até os
que, pessoas e partidos, aparentemente, deviam estar do outro lado. O fim das ideologias e o fim da História são saudados euforicamente
por quase todos e os raros que persistem em alguma forma de fidelidade ou de fé
são olhados despeitadamente de viés como sobreviventes dinossáurios. E, no
entanto... Outro dia estive a observar na TV o desastrado combate que um tal
J.E.M. tentava travar contra Cunhal, como se, falando línguas tão díspares,
ambos se pudessem de qualquer modo entender, ou sequer desentender. Numa
sociedade como aquela em que se tomou a sociedade portuguesa dos últimos anos,
inteiramente órfã de ideias e de valores, bons ou maus, Cunhal parece ter-se
tornado, de facto, numa espécie de paradigma, e contra ele e contra a sua quixotesca, fé (pois que o
homem teima, apesar de tudo, em continuar a acreditar em algo) se lançam
todos os Sanchos Panças triunfantes da nossa praça pública. É a coragem que os
move ou antes o confuso e irracional medo de alguma coisa, imensa e incorruptível,
onde as suas mesquinhas contabilidades não podem, pobres delas, absolutamente alcançar?»
In Jornal de Notícias,
7 / 10 / 92
In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento,
1994, ISBN 972-36-0323-3.
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT