«(…) E el-rei não sabia se melhor ficava parado se agitando os
trambolhos das pernas envolvidos em emplastros. - Uma pasta com bosta de porco,
maldição! - vociferava o monarca, torcendo feições e cruzes, rodando apertado
na cadeira, tentando encontrar ar digno no irrespirável ambiente que o atormentava.
- Que bem farão às minhas pernas enfermas os dejectos podres de animais perdidos? A porta abriu-se
e por ela entrou o moço de câmara mais chegado a el-rei. Gil, assim era a sua
única graça conhecida, teve uma tontura com o pivete. - Abre-me uma janela,
Gil, que me desfaleço. Gil apressou-se a obedecer, fazendo-o ainda por vontade
muito própria. Mas mais se apressou a sair, cambaleando, pela primeira vez em
vida sua ousando sair dos aposentos reais sem demandar a seu soberano se dele
pretenderia mais alguma coisa. - Que
tendes? - perguntou-lhe o cardeal (que miúdo de corpo, se compensava
com grandes visões teológicas e tementes, e era essas que vinha tendo, muito
distraído, corredor fora), em sobressalto preocupado por notar que o moço
cambaleava. - É meu rei que se desfaz em fezes. - Por ele passarei um terço,
retorquiu o cardeal, afastando-se em sentido contrário da câmara de El-Rei, deixando
Gil a contorcer-se em vómitos e procurando na sua imensa piedade cristã um
pouco de compadecimento por ambos, monarca e servidor, e uma reza própria para
tais maleitas.
Na câmara, El-Rei resmungava. Tentava recordar se os judeus tinham
aversão ou simpatia pelos porcos, sem o conseguir. A cabeça estalava-lhe, as
pernas torturavam-no de dores, as narinas fremiam-lhe. Enjoado, febril, foi
cedendo a um torpor de angústia, puxado e repuxado para os sonhos por mãos
invisíveis de algum diabo solto. Adormeceu, despertando para os fenómenos, que são
sempre um vislumbre do obscuro... O que mais temia, aconteceu: as teias do
pesadelo que há uns anos se repetiam, envolveram-no. Lá estava tudo, uma vez
mais repetido. A realidade por entre brumas. Primeiro, ouvia o coaxar de
ensurdecer de rãs, no corpo era água escaldante que lhe corria pelas veias, suava
desapegado sangue azul, com a crueza de um anseio de Estio aplacado dentro do
peito. O anil dos sonhos contra a fogueira incolor desse pesadelo... Ouvia um
ruído sempre constante, o ruído baixo de uma lima a operar em aresta de
ferro... O mundo é qualquer coisa parada na lama cósmica dos segredos,
dizia-lhe uma voz soturna... E ele acoitava-se ao ácido do medo que lhe
escorria sobre a testa, desconhecendo as vertentes da sua insanidade apaziguada
por dores fortuitas e precisas.
Maldito, trinta mil vezes maldito, irra...
A festa do Corpo de Deus, a procissão a desfilar diante da porta. Uma ladainha
de povo crente a pedir aos céus uma vida diferente. A sua mãe no palácio,
defronte dos cânticos e dos andores e a eles indiferente, rodeada de aias e de
físicos incompetentes, a sua mãe infanta berrava de dores. A dá-lo à luz. A ele
que contra todas as expectativas - Irra!
Era o nono de nove irmãos! - Seria um dia o rei desses estupores que rezavam lá
fora e reinaria sobre um grande, progressivamente dilatado reino... Venturoso.
No sonho, as coisas complicavam-se à mistura com as dores nas pernas e
uma inquietação desmedida que crescia e o inundava de suores ora escaldantes,
ora gélidos que mais se confundiam entre limites de falso e de realidade. A
morte. Via agora a Morte. O irmão estendido num banho de sangue, abandonado
morno no guarda-roupa do palácio... E o desastre do primo... O cadáver na
cabana pobre. O cavalo algures a relinchar ou a rir de o ter assassinado. A
Morte! A Morte! A Morte!
A morte vestida de longos trajos verdes... - Não, não era a Morte;
aquela era a sua sogra que rezava sem parar... E de repente a imagem
esfumou-se. Voltaram outras, as imagens ensanguentadas da sua mãe infanta a berrar
e a pari-lo, a pari-lo e a berrar, a berrar, a berrar, a berrar... El-Rei
despertou alucinado. Berrava também. Ali na câmara outros berros cresciam com
os dele. Levou breves momentos a identificá-los. Dificilmente se virou na
cadeira ampla, gemendo com o esforço. Viu o casal dos velhos cães que trouxera do
reino dos pais de sua mulher, cães, que apesar da muita velhice, berravam de
prazer saciando cios.
Lembrou-se, estranhamente, de Raquel, filha de Zacuto, mas por momentos
seus, muito breves, de cio e desejo, que logo furiosa ira o invadiu e sobrepôs:
- Primos! Primos cães e a amarem-se! Os cães como os pais do rei! Primos! Não
admira que tenham cachorrinhos loucos ou um rei doente. Filhos de primos!...
Loucos!...» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
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