terça-feira, 8 de outubro de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «”Irra!” Era o nono de nove irmãos! - Seria um dia o rei desses estupores que rezavam lá fora e reinaria sobre um grande, progressivamente dilatado reino... Venturoso»

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«(…) E el-rei não sabia se melhor ficava parado se agitando os trambolhos das pernas envolvidos em emplastros. - Uma pasta com bosta de porco, maldição! - vociferava o monarca, torcendo feições e cruzes, rodando apertado na cadeira, tentando encontrar ar digno no irrespirável ambiente que o atormentava. - Que bem farão às minhas pernas enfermas os dejectos podres de animais perdidos? A porta abriu-se e por ela entrou o moço de câmara mais chegado a el-rei. Gil, assim era a sua única graça conhecida, teve uma tontura com o pivete. - Abre-me uma janela, Gil, que me desfaleço. Gil apressou-se a obedecer, fazendo-o ainda por vontade muito própria. Mas mais se apressou a sair, cambaleando, pela primeira vez em vida sua ousando sair dos aposentos reais sem demandar a seu soberano se dele pretenderia mais alguma coisa. - Que tendes? - perguntou-lhe o cardeal (que miúdo de corpo, se compensava com grandes visões teológicas e tementes, e era essas que vinha tendo, muito distraído, corredor fora), em sobressalto preocupado por notar que o moço cambaleava. - É meu rei que se desfaz em fezes. - Por ele passarei um terço, retorquiu o cardeal, afastando-se em sentido contrário da câmara de El-Rei, deixando Gil a contorcer-se em vómitos e procurando na sua imensa piedade cristã um pouco de compadecimento por ambos, monarca e servidor, e uma reza própria para tais maleitas.
Na câmara, El-Rei resmungava. Tentava recordar se os judeus tinham aversão ou simpatia pelos porcos, sem o conseguir. A cabeça estalava-lhe, as pernas torturavam-no de dores, as narinas fremiam-lhe. Enjoado, febril, foi cedendo a um torpor de angústia, puxado e repuxado para os sonhos por mãos invisíveis de algum diabo solto. Adormeceu, despertando para os fenómenos, que são sempre um vislumbre do obscuro... O que mais temia, aconteceu: as teias do pesadelo que há uns anos se repetiam, envolveram-no. Lá estava tudo, uma vez mais repetido. A realidade por entre brumas. Primeiro, ouvia o coaxar de ensurdecer de rãs, no corpo era água escaldante que lhe corria pelas veias, suava desapegado sangue azul, com a crueza de um anseio de Estio aplacado dentro do peito. O anil dos sonhos contra a fogueira incolor desse pesadelo... Ouvia um ruído sempre constante, o ruído baixo de uma lima a operar em aresta de ferro... O mundo é qualquer coisa parada na lama cósmica dos segredos, dizia-lhe uma voz soturna... E ele acoitava-se ao ácido do medo que lhe escorria sobre a testa, desconhecendo as vertentes da sua insanidade apaziguada por dores fortuitas e precisas.
Maldito, trinta mil vezes maldito, irra... A festa do Corpo de Deus, a procissão a desfilar diante da porta. Uma ladainha de povo crente a pedir aos céus uma vida diferente. A sua mãe no palácio, defronte dos cânticos e dos andores e a eles indiferente, rodeada de aias e de físicos incompetentes, a sua mãe infanta berrava de dores. A dá-lo à luz. A ele que contra todas as expectativas - Irra! Era o nono de nove irmãos! - Seria um dia o rei desses estupores que rezavam lá fora e reinaria sobre um grande, progressivamente dilatado reino... Venturoso.
No sonho, as coisas complicavam-se à mistura com as dores nas pernas e uma inquietação desmedida que crescia e o inundava de suores ora escaldantes, ora gélidos que mais se confundiam entre limites de falso e de realidade. A morte. Via agora a Morte. O irmão estendido num banho de sangue, abandonado morno no guarda-roupa do palácio... E o desastre do primo... O cadáver na cabana pobre. O cavalo algures a relinchar ou a rir de o ter assassinado. A Morte! A Morte! A Morte!
A morte vestida de longos trajos verdes... - Não, não era a Morte; aquela era a sua sogra que rezava sem parar... E de repente a imagem esfumou-se. Voltaram outras, as imagens ensanguentadas da sua mãe infanta a berrar e a pari-lo, a pari-lo e a berrar, a berrar, a berrar, a berrar... El-Rei despertou alucinado. Berrava também. Ali na câmara outros berros cresciam com os dele. Levou breves momentos a identificá-los. Dificilmente se virou na cadeira ampla, gemendo com o esforço. Viu o casal dos velhos cães que trouxera do reino dos pais de sua mulher, cães, que apesar da muita velhice, berravam de prazer saciando cios.
Lembrou-se, estranhamente, de Raquel, filha de Zacuto, mas por momentos seus, muito breves, de cio e desejo, que logo furiosa ira o invadiu e sobrepôs: - Primos! Primos cães e a amarem-se! Os cães como os pais do rei! Primos! Não admira que tenham cachorrinhos loucos ou um rei doente. Filhos de primos!... Loucos!...» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT