«Assim,
pois, pensei que, sendo já conhecida, nas suas linhas gerais, a biografia do
infante, eu poderia, sem atraiçoar a intenção de tomar outro rumo, estudando,
dentro dos estreitos limites de uma carta, a feição proeminente de uma época,
de que o infante Henrique foi a culminação, mas que se assinalou pelo concurso
de um grupo de homens colossalmente prestigiosos. Como na vida de todos os heróis,
há manchas, claro-escuro na vida do infante
Descobridor. Encarado em si mesmo o homem, teve defeitos, cometeu erros,
mas não é esta a hora própria para os relembrar. O príncipe exerceu, e este é o
ponto essencial e capital, uma acção benéfica na história da humanidade, e
marca o período que, elevando Portugal, aproveitou ao mundo todo. Mas, quanto à
época, é justo, sem nunca perder de vista o infante, procurar medir a estatura
dos portugueses do século XV, que com ele colaboraram, nas viagens ou nas
campanhas, e que constituem os elementos de caracterização do espirito
arrojado, leal, cavalheiresco, épico, dos inexcedíveis heróis desse tempo. A
alma portuguesa era então um misto de poesia e valor, sobretudo de poesia no
valor. Feita de bronze, não conhecia perigos, dificuldades, resistências. O
infante, estimulando a coragem para as empresas marítimas, era a expressão do
sentir de heróis, que avançavam sempre, contra o Mar Tenebroso, contra os mouros, os inimigos exteriores, ou
contra as agitações da política interna, sem medirem os percalços do cometimento.
A
pureza dos costumes, nos homens e nas mulheres, dava um como perfume de
santidade impecável às ideias e aos sentimentos da época. A religião era mais
alguma coisa do que o culto de Deus nos templos: era a lei por onde cada um
regia as suas palavras e acções, os seus pensamentos e feitos, nas suas
relações com Deus ou com os homens. O fanatismo religioso levava a ver
inimigos naqueles que, não comungando na mesma religião, não poderiam atingir o
grau de perfeição moral em que todas as crenças se purificavam. Era um
preconceito do tempo, eram as ideias da época. Mas há nesse sentir, que hoje se
nos afigura bárbaro, uma noção mal compreendida, posto que sincera, de que o
catolicismo era a única expressão possível da civilização dos costumes.
Alongados os descobrimentos marítimos pela costa ocidental da África, iniciado,
com chave de oiro, o período dos factos gloriosos, que nos deram farta participação
nos progressos da civilização universal, fechava-se, simultaneamente, a porta
do espírito cavalheiresco que dominara o coração dos portugueses da Idade Média.
Depois disso fomos guerreiros, mas não eramos já cavaleiros. Fomos ainda
conquistadores, mas não eramos já impulsionados por um móbil limpo de ambições
mesquinhas.
O
jovem rei Sebastião, voltando da sua primeira jornada a África, quis
desembarcar no cabo de S. Vicente, por uma noite de lua, e ali se demorou nove
ou dez dias, como ele próprio contou, meditando ambiciosamente na grandeza de
uma época, que dos rochedos do Algarve, como uma águia, havia no tempo do
infante Henrique arrancado voo para ir assombrar o mundo inteiro. Tinha pena o
jovem e valoroso rei de não ser dessa época. E com razão (?). Mas Portugal
havia começado a descer: Álcacer Quibir, o abismo cavado pelas mãos do
imprudente monarca, breve se transformaria na sepultura de um século de glória.
Não trarei
novos subsídios á biografia do infante
Descobridor, de quem tantas penas ilustres se irão por certo ocupar; mas
procurarei desenhar, na vasta tela da sua época famosa, o vulto de um homem,
que é um elemento importantíssimo de caracterização e de síntese, de um homem
sem o qual essa enorme e brilhante conjugação de heróis, apostados em
glorificar o nome da pátria, ficaria incompleta. Refiro-me a Álvaro Vaz Almada,
que foi contemporâneo do infante Henrique, e que bem se pode chamar o último
cavaleiro português. Herculano escreveu dele no Panorama: D. Álvaro,
caindo morto, era o symbolo da cavallaria expirando. O próprio infante
Henrique dizia de Álvaro Vaz Almada que não somente Portugal, mas também toda a
Espanha, podiam ter grande gloria de criar tão famoso cavaleiro. E o rei Afonso
de Nápoles e seu irmão o infante Henrique de Aragão diziam que tinham
encontrado em Portugal bom pão e bom
capitão. Bom capitão, Álvaro
Vaz. Tal era o homem.
Resumirei,
quanto me for possível, o quadro genealógico de Álvaro Vaz Almada. Sueiro
Viegas Coelho, fidalgo de velha estirpe, teve dois irmãos e uma irmã. Deles, o
mais velho foi frade; o outro, Gonçalo Magro, continuou-se num filho bastardo,
Lourenço Gonçalves, que casou com D. Thereza Godins. Deste casamento houve dois
filhos, um dos quais, Vasco Lourenço, teve por sucessor João Annes Almada, que
foi chamado o Grande, e foi vedor
da fazenda d'el-rei Pedro e d'el-rei Fernando. É com este cavaleiro, que por
seu bom conselho, reflectida experiência, alta posição politica e aparatosa
apresentação mereceu o cognome de Grande,
que principia, na sua família, o apelido de Almada, pelo facto dele ser
natural daquela vila. Diz António Lima, no Nobiliário,
que João Annes fôra por duas vezes enviado ao estrangeiro como embaixador, e
que por lembrança sua mandara o rei Fernando começar a cerca nova de Lisboa. Casado
com D. Urraca Moniz, deixou um filho, Vasco Lourenço Almada, que foi o instituidor
do morgado da sua família na vila do mesmo nome, e que morava em Lisboa nos
seus paços de Valverde, junto ao Rossio. Este Vasco Lourenço teve um filho e
uma filha». In Alberto Pimentel, Um Contemporâneo do Infante Henrique, Carta a Mr
Mathieu Lugan, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, Typografia Silva
Teixeira, Casa Editora M. Lugan Sucessor, Porto, 1894.
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