sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Bela Poesia. Tabacaria. Álvaro de Campos. «Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me»

Cortesia de wikipedia

Tabacaria
[…]
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
a caligrafia rápida destes versos,
pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
nobre ao menos no gesto largo com que atiro
a roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
e fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
a mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
vejo os cães que também existem,
e tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
e tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
e hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
e penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
e que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
e o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
como um cão tolerado pela gerência
por ser inofensivo
e vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
e não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
calcando aos pés a consciência de estar existindo,
como um tapete em que um bêbado tropeça
ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
e com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
e a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
sempre uma coisa defronte da outra,
sempre uma coisa tão inútil como a outra,
sempre o impossível tão estúpido como o real,
sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
e a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
e vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
e saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
e gozo, num momento sensitivo e competente,
a libertação de todas as especulações
e a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
e continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.


Poema de Álvaro de Campos, in "Poemas" , heterónimo de Fernando Pessoa

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