As Doutrinas Filosóficas de
Antero
Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX
«A verdade é que no fundo desta questão de filósofos, estava uma
questão humana, da larga e fundamental importância humana. A metafísica, na sua
absorvente dialéctica, é atreita a esquecer que os indivíduos não são
abstracções, simples determinações lógicas duma ideia, mas seres reais,
autónomos, cujo princípio de acção reside nas profundezas da sua própria natureza,
constituindo um verdadeiro em si, distinto e irredutível, e não
um momento transitório de alguma substância só e verdadeiramente existente na
sua vaga universalidade. Mas estes protestos da consciência moral não iam
apenas de encontro aos dogmatismos apriorísticos, iam também de encontro ao
necessitarismo das ciências, estruturalmente mecanicistas e deterministas. De
modo que o estudo do movimento filosófico nos trouxe até ao problema da
liberdade: ponto singular onde todas as dificuldades desse pensamento se reúnem
e enlaçam.
A antítese mecanismo-determinismo: espiritualismo-liberdade, é o ponto
nodal da questão; se é possível resolver este antagonismo numa síntese
superior, estará resolvido o problema de encontrar a síntese do pensamento
moderno. Ora os dois factos mais notáveis da história da filosofia na segunda
metade do século XIX foram a condenação de todo o apriorismo e, seguindo a
reforma do espiritualismo pela crítica de Kant, a nova psicologia científica. A
condenação do apriorismo dogmático pela ciência não ia contra o valor da Razão, nem implicava uma renúncia à especulação
e à filosofia. Foi uma mudança de atitude: tentou-se uma filosofia da natureza
de temperamento científico. A objectividade científica, desprezando as
qualidades segundas, procura os factos últimos em simplicidade com que pudesse
reconstruir o complexo do real; estes são determinações de espaço e tempo, eis
porque o carácter da ciência é de ordem mecânica.
Mas do mecanismo sai necessariamente o determinismo, e é essa com
efeito a segunda feição característica que a nova filosofia da natureza herdou
da ciência, sua mãe. Ora as séries de fenómenos sucedem-se numa certa ordem de
complicações: a forma do Universo é, pois, evolucionista. Aqui encontram-se
duas formas de evolucionismo: a da filosofia idealista germânica, em que o
superior requer e possui um aumento de ser, vindo da
virtualidade infinita da ideia; a da filosofia mecanista em que o complexo
resulta de meros arranjos cumulativos dos simples ou elementos. A evolução,
neste ponto de vista, é propriamente um estado progressivo da complicação e
nada mais. É, por conseguinte, só formal. No fundo, a evolução, segundo a
filosofia científica da natureza, é uma aparência e nada contém em si de
substancial: o substancial e o verdadeiramente existente são só aqueles elementos
mecânicos de que tudo é feito, em que tudo se resolve e cuja complicação gera a
fantasmagoria do mundo fenomenal. Esta concepção é, pois, incompleta.
Falta-lhe exactarnente o que falta à inteligência científica. O
mecanismo é o máximo grau de abstracção de que a inteligência é, capaz dentro
dos limites e com os dados da sensibilidade, mas é só isso. A verdadeira
realidade, concreta, viva, espontânea, falta-lhe: faltam-lhe as ideias superiores,
as que alumiam, interpretando-as, as inferiores, as fornecidas pela
sensibilidade. De modo que o mecanismo é
uma verdade fundamental, mas circunscrita, positiva dentro dos seus limites. Já
vimos que estes são os da mesma inteligência científica. É a síntese do
espírito moderno no terreno do conhecimento científico. Outros elementos do
mesmo espírito a virão completar e ampliar. O criticismo bem como a nova
psicologia não podem ver na alma essa substância de natureza excepcionalíssima
e todavia real, mas apenas a unidade, quando não simplesmente a soma dos factos
íntimos da consciência. Desagregado o substancialismo da alma, fica o facto
consciência inabalável soberano a
mostrar como não é possível tudo reduzir a movimentos e composições de
movimentos.
A intensidade, a direcção e o encadeamento das forças que num dado
momento actuam no universo, eis tudo quanto o mecanismo sabe, ou antes, quanto
pode aspirar a saber. Ora nessa prodigiosa cadeia de movimentos matematicamente
concatenados, o que o mecanismo ignora e ignorará sempre são as vontades, os
pensamentos, os sentimentos, numa palavra, a actividade interna de todos esses
seres, elementares ou não elementares, arrastados no giro da causalidade
mecânica. A mecânica conhece, pois, as
acções dos seres, mas não a actividade interna que as produz. O que a
mecânica ignora e é condenada a sempre ignorar, conhece-o a consciência que se
apreeende , pois, como verdadeira força-tipo. Na consciência sentimos
que o espírito, da sensação à ideia e à volição, é sempre activo. ... uma sensação é uma modificação da sua
substância assim como uma ideia é uma modificação dessa substância, assim como
uma volição é uma determinação do mesmo ser. Os factos são o ponto de partida
das ideias, cuja virtualidade está no espírito: em si são inertes e
inexpressivos. O conhecimento é pois um facto íntimo e próprio do espírito, e o
universo conhecido o produto da sua espontânea actividade». In
Leonardo Coimbra, O Pensamento Filosófico de Antero de Quental, Guimarães
Editores, Lisboa, 1991, ISBN 972-665-372-X.
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