O que é a Saudade, linguisticamente
«(…) Soedade soìdade suïdade sempre contaram na poesia arcaica por quatro sílabas,
correspondentes às do latim solitates, de que saíram, por
evoluções fonéticas normais: queda do l
intervocálico; redução das outras duas consoantes mediais, de dentais fortes a
brandas; redução de i átono a e surdo; finalmente pronúncia de o-e como o-i e redução a u-i que,
pela tendência do português a formar ditongos decrescentes se deviam fundir
necessariamente num úi. A forma
primitiva so-e-dade perdurou na Galiza até o século XV. Podem verificá-lo
nos textos bilingues do Cancioneiro Galego-Castelhano, que
abrange as poesias líricas da idade de transição do primeiro ao segundo período
(1350
a 1450), incluindo as de Macias, o Namorado. Há mesmo poetas
de hoje que a empregam, p. ex. Rosalia de
Castro, e Curros Enriquez nos Aires de minha terra. A par dela, já
se encontra contudo, em compositores do século XIII, a segunda forma so-i-dade
segundo as provas contidas nas Cantigas de Santa Maria. A terceira,
suidade,
é hoje a mais viva na boca do vulgo galiziano, usada também por poetas
ilustrados que se esforçam em erguer a linguagem literária os dialectos
ancestrais.
Em Portugal tivemos igualmente, após o pré-histórico so-e-dade
(de que eu não posso indicar exemplo), o arcaico so-i-dade, documentado
nas Cantigas
del-rei D. Dinis. O ulterior su-i-dade ficou sendo a forma
preferida dos escritores clássicos até 1580,
acompanhado do adjectivo suidoso de que, parece, não se fazia
uso fora das fronteiras. Preferida. De modo algum exclusiva. Saudade
e saudoso
primitivamente portuguesas, foram subindo, pouco a pouco, da boca de
semi-cultos, às camadas sociais superiores, dos verdadeiramente letrados. Venceram
todavia em toda a linha só depois de Alcácer-Quibir, nos sessenta anos em que a
união ensinou a convertidos e não-convertidos a distinguir, a amar, e a
cultivar com especial carinho tudo quanto era fundamentalmente português, e
também a chorar em Babel-Espanha por Zião-Lisboa. Luís de Camões, que pessoalmente teve tanta ocasião de sentir saudades,
no Ribatejo, em Ceuta, na Índia, na China, em Moçambique, Luís de Camões empregava ainda, sem diferença de sentido, ora soidade
e soidosa,
ora saudade
e saudoso.
Por isso, por soidade ser usadíssimo até 1580, surpreende, e muito, que saudade,
forma evolutiva, alterada em virtude de processos analógicos, se encontre
isolada, num códice com prosas do século XIV, anteriores a Ceuta e às empresas
marítimas patrocinadas pelo Infante Henrique, para logo desaparecer de novo, não
tornando a surgir senão no século XVI. Na segunda metade do século XV, nos
textos versificados do Cancioneiro de Resende, é que eu
procurei, e continuarei a procurar, as auroras da forma nacional. Seria bom por
isso que algum romanista de Lisboa, ou algum experto da Torre do Tombo ou
Biblioteca Nacional, examinasse de novo o precioso códice alcobacense n.º 266, que
já nos trouxe tanta noção importante acerca da linguagem arcaica, com o intuito
de fixar se a letra dele é realmente do século XV; e principalmente, se a fª
116 se lê, na Vida de Santo Amaro,
o trecho seguinte: E entom disse Leomites: meu senhor e meu amigo Amaro, grande saudade
ora me leixades. E novamente a fª 119: E Vellijdes lhes disse: Ay
amigas, nom choredes ante ell, que auerà gram coyta e gram saudade.
Se não houver emenda de segunda mão nesse passo, nem tão pouco erro de leitura
ou escrita da parte do editor do texto OttooKlob, em geral muito cuidadoso, e
se a letra for realmente do século XIV então teremos de aceitar como provada a
existência de saudade, com o significado de hoje, no tempo de Pedro e Inês, de pouco uso embora». In
Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas
e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade
minha – quanto te veria?”, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães
Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.
Cortesia de Guimarães E./JDACT