Pedro, Inês e a Fonte dos Amores
«(…) Ambas as expressões, põe-nas na boca dela o benemérito Garcia
de Resende nas ingenuamente eloquentes Trovas
a modo de romance, tão elogiadas desde que Menendez Pelayo as classificou (e
bem) como a composição mais verdadeiramente e expressamente nacional do Cancioneiro
Geral, em que o editor reuniu o que na Corte Portuguesa se poetou de 1450
a 1515. Garcia de Resende parece ser, além disso, o primeiro trovador
que deduziu das cenas de vingança contadas por Rui de Pina a ideia de os
três áulicos ministros de el-rei, esquecidos das leis da cavalaria, haverem
atravessado com as suas próprias espadas o peito da mansa cordeira cujo
sacrifício no altar da razão de estado a braveza natural e medieval de Afonso
IV havia ordenado, cedendo aos conselhos dos que temiam o poder castelhano. Seguiu-lhe
o exemplo de António Ferreira, em cuja Castro
os matadores são dois: Pero Coelho e Diogo Lopes Pacheco.
Mas aqueles
cruéis ministros seus e conselheiros
arrancando às espadas se vão a ela
traspassando lh'os os peitos cruelmente.
Seguiu-lho também o suave Diogo Bernardes, no soneto
encomiástico que dirigiu ao amigo e mestre, dizendo-lhe que Inês se teria partido leda deste
terrestre mundo, se previsse a sua apoteose,
inda que de mais duros golpes vira
o seu tão brando peito traspassado.
Também seguiu-lhe de perto o exemplo o galego-castelhano frei Jerónimo
Bermudez, com nome civil António da Silva, na sua Nise Lastimosa, essa tragédia que, embora seja apenas tradução
livre da Castro de Ferreira, passa
por original, em virtude das ideias laxas sobre propriedade literária, vigentes
tanto na Idade Média como na época da Renascença. Com relação à gente de armas
que formava o séquito de el-rei, ele verte as palavras de Ferreira dizendo:
Mas aquelles malditos alevosos...
desnudas las espadas van-se a ella,
los pechos le traspasan crudamente.
Do mesmo modo procederam Mexia Lacerda na sua Ines Reina (1612) e Luís Velez
Guevara, que condensou artisticamente num belo drama (1652) a Nise Lastimosa de Bermudez e a Nise Laureada, isto é, coroada.
Segunda parte na qual o inventivo e retórico frade parafraseou os versos
concisos do autor d'Os Lusíadas,
aquele que depois a fez rainha,
e a
que despois de ser morta foi rainha.
Mesmo aqueles dramaturgos que se ocuparam exclusivamente de Pedro como rei justiceiro, elogiando as
suas sentenças e sanhas vingadoras como dignas de um Sábio Salomão, repetem nas suas alusões a Inês a concepção geralmente aceite. Assim o pensativo Alarcão
em siernpre ayuda la verdade onde Pedro para explicar a sua severa
tristeza alude à morte da querida cujo
peito pasó cobarde espada. Assim também o seu imitador Matos Fragoso
em Ver
y crer, conquanto fale mais do sedento nobre furor de Pedro e do raro e novo artifício da sua
vingança do que da injusta tirania de Afonso IV.
Quanto a Luís de Camões, o
primeiro que pôs em arte a história de Portugal com admirável veracidade,
crente todavia na tese horaciana, ninguém ignora, que no afamado episódio é o
rei Afonso quem levanta a espada fina contra Inês, mas, como nos poetas menores, os brutos assassinos são os
ministros que banham as espadas, no seio e no colo de alabastro da
vítima inocente, como se o poeta houvesse tido o empenho de conciliar as duas
figurações: da degolação (de-coll-atione) e a da matança apaixonada.
A razão da preferência dada ao peito trespassado parece-me evidente. A morte
pela espada é mais nobre, mais estética do que a execução pelo cutelo. Ao peito
parece também referir-se a pena de talião executada nos supostos matadores». In
Carolina Michaelis de Vasconcelos, Artigo publicado na Revista Lusitânia,
volume II, compilado em Dispersos, Originais Portugueses, I Vária (1º volume),
Lisboa, Edições Ocidente, 1969.
Cortesia de E. Ocidente/JDACT