A Rainha Triste
«(…) No início da Primavera de 1441,
D. Leonor e a pequena Joana encontravam-se em Madrigal, feudo da rainha
castelhana junto a Arévalo, quando chegou de Portugal um novo enviado do conde
de Barcelos encarregado de lhe explicar o compromisso que o conde assinara com o
regente, certamente nada favorável à causa de Leonor. A nova contrariedade para
a rainha desterrada viu-se agravada pelo facto de o portador da notícia ter
sido um dos nobres outrora mais próximos do seu marido, de linhagem dos Távora,
pai e tio de duas donzelas da rainha D. Joana em Castela. Não seria esse o
único episódio em que o presente da então infanta de Portugal se transformava
na causa distante de um acontecimento que lhe caberia enfrentar como rainha em Castela.
Quando se encontrava em Madrigal com a mãe, soube-se a notícia do falecimento
da rainha proprietária de Navarra, D. Blanca, esposa do infante Juan de Aragão.
Este luto condicionaria a vida de Joana e também a da sua irmã, a infanta
Catarina de Portugal, uma menina de sete anos que nessa mesma altura, e por
ordem de um documento assinado pelo irmão, Afonso V, começara a ser educada por
uma prima do capitão de Lisboa, um dos grandes adversários da rainha Leonor.
Preocupada com uma decisão que marcaria o destino dessa criança, D. Leonor
conseguiu, depois de muito suplicar, que o rei de Castela aceitasse conceder-lhe
uma nova entrevista. O encontro, a sós com a rainha e que durou três horas,
teve lugar ao terminar a primeira semana de Maio de 1441, numa aldeia próxima de Madrigal. Pouco depois, as Cortes
portuguesas, reunidas em Torres Vedras, tornavam oficial o enlace entre a filha
do regente e o rei Afonso V. A humilhação da rainha, exilada na sua própria
terra de origem, não podia ser maior. D. Leonor decidiu mudar-se com a filha
para Medina del Campo, para se instalar no convento de Santa María de las Dueñas,
onde repousavam os restos mortais da sua mãe, Leonor de Albuquerque. A rainha
encontrou-se aí com a irmã e os irmãos Juan e Enrique, decididos a redigir uma
série de exigências para apresentar ao rei castelhano, que uma vez mais estava
acompanhado pelo valido. Reunidos os quatro irmãos, concretizam os seus
pedidos. Uma delas pede textualmente a mediação [do rei de Castela]
perante o infante Pedro de Portugal para que D. Leonor recupere a posição que tinha
quando o seu marido era vivo, com garantias de futuro... Sobre esta demanda
deliberou o Conselho e enviou as suas respostas, mas os infantes não
responderam, estavam maduros os seus planos para se apoderar de Medina.
A 28 de Junho, as gentes dos infantes entram em Medina, que lhes abre
as suas portas. O valido Álvaro mal tem tempo para abandonar a galope a cidade,
a pedido do rei, aproveitando a confusão. Dentro das normas e mentalidade da
época, os infantes prestam acatamento ao rei, a serviço de quem dizem ter vindo;
imediatamente chegam as rainhas de Castela e de Portugal e o príncipe, falam
com o rei e instalam-se no próprio palácio. A aparente normalidade não deve
induzir-nos em erro. O rei transforma-se num verdadeiro prisioneiro, da corte
são despedidos todos os oficiais da sua casa e todos os partidários de Álvaro. A
pequena infanta Joana assiste assim ao primeiro dos golpes palacianos que serão uma constante na sua vida. Como
escreveria mais tarde o cronista palentino, a
rainha e seus irmãos decidiram moderar a sua vitória, porque não lhes
interessava a opressão do rei, mas apenas a ruína do privado (...). Portanto,
depois de render homenagem à majestade real e dar testemunho de humilde obediência,
manifestaram o seu propósito, e os temores acalmaram-se. Conseguido o
objectivo, D. Leonor e a filha permanecem algum tempo instaladas no palácio do
rei de Castela, onde os infantes de Aragão se transformam nos árbitros da
situação. A exilada pensa já no seu iminente regresso a Portugal como regente e
tutora dos filhos. A infanta Joana, uma criança de dois anos e três meses, que
já fala o castelhano com os nativos e igualmente bem o português com os
servidores da mãe, sobretudo com a ama e o colaço, converte-se durante dias no
centro das atenções desse grupo de reis, rainhas e infantes cultos, atraentes e
apaixonados, que serão imortalizados pelos melhores poetas castelhanos de
finais da Idade Média.
De entre eles não se destaca propriamente o príncipe Enrique, um adolescente
tímido, cujo nariz esmagado após um misterioso acidente (há quem fale da
queda de uma torre durante um terramoto) lhe confere, segundo um cronista,
um aspecto vagamente simiesco. Catorze
anos antes do seu casamento com Joana, Enrique convive sob o mesmo tecto com a
futura esposa, até que a pequena infanta regressa com a mãe ao convento fundado
pela sua riquíssima avó castelhana, filha de uma infanta portuguesa, por sua
vez filha de Inês de Castro. O príncipe mostra-se por esses dias muito
agradecido à sua tia Leonor. É a ela que as crónicas de Castela, ao contrário
das portuguesas, atribuem um papel conciliador relativamente à irmã, a rainha
de Castela, reconhecida pela falta de
sanidade e repleta de desejos violentos, porque além da doença, inata por natureza, das mulheres, que as faz precipitar-se
do seu grau de impulso do capricho e ansiar por que tudo se perca de modo a que
se cumpra a sua cobiça, os mais avisados consideravam que esta mulher
ultrapassava todas as outras, segundo escreverá Palencia anos mais
tarde, fazendo uso da mesma misoginia militante que acabará por aplicar em D.
Joana». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente
Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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