Vidas são Vidas
«(…) Mas os que haviam atingido os primeiros postos ou planos, nem
davam pela sua presença perto. Também esses não mereciam aos camaradas nem
amor, nem respeito, nem admiração verdadeira; todavia, como poderosos, eram
adulados e temidos, só anavalhados pelas costas, em sigilo. Os outros..., (móveis
da água-furtada!) não passavam de números; saía um número ou chegava outro
número. Geralmente se aborreciam entre si, como os pobres aos pobres ou os
viciosos e tarados aos que sofrem dos mesmos vícios e taras. Qual o indivíduo torto que gosta de
espelhos? Estas eram as impressões pessimistas de Pedro ao abandonar o
teatro, decerto sem o ter conhecido senão pelos aspectos mais contundentes. Reconhecera
que só demasiado tarde poderia, talvez, ganhar a vida nesse estranho mundo. Subserviências
morais, ainda não chegara a aceitá-las. Mas já não era descer, para um dos
antigos Chefes do Recreio dos Maiores do Colégio Familiar, dirigir-se
com falsa humildade a antigos companheiros
de então? Importunar velhos conhecimentos da família em dias prósperos? Pedro
Sarapintado descera. Tirara o boné para falar a indivíduos que chegara a tratar
por tu. E os que dantes o tratavam por tu, tratavam-no agora por você. Os que o
não conheciam, tratavam-no por tu.
Ora quem não sabe que os protectores se impacientam com o seu papel? Que os esmoleres
se cansam do pobre demasiado assíduo à
sua porta? Que a Caridade tem as asas curtas, e as sente pesadas quando
se lhe tornam obrigação? Pedro
experimentou como se perde primeiro a
simpatia, depois a benevolência, depois a condescendência, depois a tolerância,
depois qualquer estima, depois todo o respeito, depois até a mais elementar e fingida
cortesia da parte dos vulgares protectores. Breve lhes parece legítimo, até
moral, abandonar ao seu fado um impertinente protegido; e como é natural,
começam por acusá-lo. Não obstante os esforços de Pedro para se abaixar ao seu
actual nível, (e quando já o supunha ter conseguido) quase sempre seus
benfeitores ou patrões o achavam demasiado senhor
do seu nariz. Errariam por
completo? Apesar de tudo, não se lembraria ele de haver sido um Chefe? Quase todos os excelentes burgueses bem
instalados, comerciantes de crédito, altos ou até médios funcionários do Estado,
profissionais de brilhante carreira, etc., antigos amigos de seu pai, pais de
seus ex-condiscípulos, às vezes iá os pró prios seus ex-condiscípulos, o tinham
por poeta e fantasista. Boa gente, alguns deles; mas que, sem nada conhecerem
da sua vida, se indignavam com o seu parasitismo.
Em tal situação, quase lhe fora uma feliz ocorrência a morte da mãe.
Pedro Sarapintado, que era um filho normal, até um bom filho, nem pudera
lamentar o que todos os filhos normais tanto lamentam! Mas não tendo a mãe a
seu lado, mesmo inválida, achou-se inteiramente só naquela bela cidade
indiferente ou hostil; (só no mundo, afinal!) ou, como perdera toda a fé
religiosa, (ou a julgara ter perdido) só no universo. O que significa
isto de pavoroso, pôde ele sabê-lo. Sem contas a dar senão a si mesmo, desceu
mais uns degraus. No fim e ao cabo, fazia-lhe falta o estímulo de alguém a quem
manter! Então compreendeu o que representava para ele a morte da mãe, e curtiu
saudades pungentes da pobre companhia que ela lhe fora. O desespero frio ia-se apoderando
de ele sob a forma do hábito. Já, no geral, de qualquer modo aceitava a sua
situação. Começou a sentir-se coisa pouca. Repelido, por dificuldades de
pagamento, dos quartos em pensões para gente pobre ou em sinistras casas
particulares, conheceu as alcovas interiores comuns-de-dois, com sócios de acaso;
os albergues nocturnos; até as dormidas em bancos de jardins, sob os portais,
debaixo dos alpendres, em qualquer esconderijo que oferecesse qualquer abrigo.
Claro que nem aí podia descansar, quando surpreendido: não são lugares onde se
passe a noite. Às vezes, pela madrugada, se acolhia à Estação, e adormecia a um
canto fingindo esperar o primeiro comboio.
Com as suas sardas, os seus olhos quase infantis, a sua cabeleira em
chamas, o seu grande corpo robusto só desajeitado de movimentos (e agora
porco), dava nas vistas às mulheres e parecia não lhes desagradar. Como
ainda eram elas que, por momentos ou dias, lhe propiciavam certa ilusão de
companhia, com algumas repartia os seus ganhos
nas épocas relativamente prósperas. Mulheres do fado, naturalmente. Mas
percebera que até às do vício elegante e oculto poderia agradar. Chegou a
receber propostas mais ou menos directas; a correr uma ou outra aventura que, na
sua posição, nunca julgara vir a correr. Não querendo permitir que fossem elas
a pagar-lhe, (e algumas lhe insinuavam não lhes parecer isso muito estranho)
dispensou as mulheres nos tempos mais difíceis. Ou então saciava o impulso
bruto sem a mínima escolha, nas eventualidades do vício que se paga com
satisfazer-se, e que é de todas as classes. Assim reconheceu a solidariedade da
miséria material com a moral ou fisiológica». In José Régio, A Velha Casa, Vidas
são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.
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