«(…) Tudo começou esta manhã, quando o alarme tocou às dez.
Senti-me com falta de pachorra para ir às aulas. Queria ficar a dormir, pelo
menos, dois dias de seguida. A noite fora passada com o homem de quem eu gosto.
Os meus pais estão no estrangeiro há vários dias, e em minha casa apenas se
encontrava a nossa empregada. A minha irmã, Mafalda, mais velha um ano, tinha
aproveitado a ausência deles para ir dormir a casa do namorado. Quando o alarme
tocou, não me apeteceu levantar. Coloquei-o no snooze várias vezes. À
quarta vez, tomei oficialmente a decisão de me baldar.
Uns segundos depois senti vários toques na porta. Era a empregada. A
Cesária. Uma cabo-verdiana que os meus pais trouxeram daquele país há uns dois
anos e tal. Os meus pais trabalham na área do imobiliário. Quero dizer, os meus
pais, não. A minha mãe e o meu padrasto. Ele tem uma agência de imobiliário.
Sempre morou em Cascais, sempre teve dinheiro de família e ficou com as várias
lojas que herdou do pai. Ele trata da maior parte das vendas mais caras na zona
de Cascais, Quinta da Marinha, Gandarinha e Quinta Patiño. Quanto à minha mãe,
sempre se habituou a não fazer nada. O meu pai tinha uma empresa de construção
civil. Segundo diziam, era um dos homens mais requisitados em Cascais nos anos
oitenta.
Isso é a história que contam. Eu não sei, porque nunca o conheci realmente.
Quando eu tinha três anos, ele morreu num acidente de carro na marginal.
Naquele tempo, a marginal era a estrada mais perigosa da capital. Uma noite,
depois de um jantar em Lisboa, os dois iam buscar-nos a casa da minha avó. Após
uma intensa chuvada, a estrada estava toda molhada e um carro que vinha na
direcção contrária perdeu o controlo e chocou de frente com eles. Na viatura
iam uns miúdos bêbedos. Estavam a fazer uma corrida com um carro que seguia
mesmo atrás deles. O meu pai teve morte imediata. A minha mãe ficou uns dias em
coma, mas resistiu.
A minha mãe sempre se habituara a viver bem. O meu pai
ganhava muito dinheiro. Com a morte dele, porém, a empresa desagregou-se e em
pouco tempo faliu. A minha mãe ficou sem dinheiro vivo todos os meses. Como
tinham bastantes reservas no banco, numas contas na Suíça e em offshores,
a minha mãe não deixou de levar o estilo de vida a que estava acostumada. O
dinheiro foi desaparecendo, e só quando o contabilista lhe disse que, se
continuasse a gastar daquela maneira, iria ficar rapidamente sem nada é que ela
percebeu que tinha de fazer alguma coisa. Na vida de uma pessoa normal o
primeiro passo seria começar a trabalhar. Só que ela tinha apenas o décimo
segundo ano. Sempre achara que iria ter a vida de sonho com o meu pai e não
precisava de um curso superior. O que veio a acontecer. No entanto, esqueceu-se
que no conto perfeito pode haver azares.
Nessa altura decidiu começar à procura de outro marido. A minha mãe sempre
fora uma das mulheres mais bonitas de Cascais. Nos anos oitenta também era das
mais concorridas, e apesar de na época não haver a quantidade de revistas que
hoje se vêm, nas poucas crónicas sociais que existiam, ela aparecia quase
sempre. Ela e o meu pai eram considerados um casal perfeito. Eu e a minha irmã
tivemos a sorte de, fisicamente falando, ficar com o melhor dos dois.
Voltando à minha mãe. Ela recomeçou a sair socialmente para encontrar o
marido seguinte. Dois anos depois da morte do meu pai, quando eu já tinha cinco
anos, casou-se com o Fernando. Ele era rico, tinha bom ar (apesar de não ser
tão bonito como o seu pai, segundo me dizem as amigas da minha mãe)
e podia dar-lhe o estilo de vida a que sempre se tinha habituado. Entretanto,
eu e a minha irmã estávamos entregues a várias pessoas da família. Alternávamos
entre a casa da minha avó materna, e as de tias e tios de sangue e por
afinidade». In Francisco Salgueiro, O Fim da Inocência, Diário Secreto de Uma
Adolescente Portuguesa, Oficina do Livro, Lisboa, 2010, ISBN:
978 989 555 19 6.
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