De o Arco de Sant’Ana a Uma Família Inglesa
O Arco de Sant’Ana
«(…) Tal como Garrett expressamente declara, o que
nesta obra há de mais vivo é o sabor
forte e picante da localidade: o próprio autor chama a atenção para
regionalismos vocabulares de Entre-Douro-e-Minho, traz-nos aos ouvidos o
falatório popular, sobretudo feminino, como o da incalável Briolanja, e,
a começar pela descrição do próprio Arco de Sant'Ana e do seu desabamento, Garrett
dá muita expansão livre às recordações da sua infância no Porto e em Gaia. De
resto, a narrativa põe manifestamente de pé um sujeito enunciativo com os seus
objectos correlatos. Note-se, especialmente, que Vasco, o protagonista, é um
estudante feito herói da liberdade popular, chefe, porta-bandeira e orador
revolucionário, e todavia convicto de uma ascendência nobre por evidência das
suas altas ambições conscientes. Curiosamente, o texto opõe as suas atitudes à
dos demagogos burgueses que procedem através de ostensivas confraternizações
plebeias. Vasco dirige a plebe, mas não se identifica com ela. O
reconhecimento, como sendo seu pai, do bispo contra o qual conduz a revolta popular,
é mais uma imagem daquele edipiano parricídio ideológico que em Garrett acentua
as suas regressões e os seus remorsos, sobretudo a partir do momento em que,
sob os Cabrais, o liberalismo lhe parece degenerar num novo feudalismo
plutocrático.
Por outro lado, a condenação de dois crimes de lascívia, aquele de que
o próprio Vasco nasceu por violação de Ester, uma bela judia, e aquele que o bispo
se prepara para perpetrar em Aninhas, a jovem casada de vinte anos, não deixa
de ter um orla de ambiguidade. Lembro-me de que, em época mais puritana do que
a nossa, Fidelino de Figueiredo condenou a cena garrettiana da desfloração de Sara.
Permito-me acrescentar que Garrett glosou, num poema juvenil, O Roubo das Sabinas, e ainda no romanesco
rapto de D. Branca por Aben-Afan, o
tema da mulher que gostosamente se rende a um golpe de audácia transgressiva.
E, no próprio desfecho de O Arco de Sant’Ana,
o autor não perde o ensejo de, espantosamente, transfigurar a Bruxa de Gaia
numa bela mulher bem conservada, de quarenta anos, com o seu puro, puríssimo sangue da Arábia,
respirando o queimor ardente do
deserto, para o efeito de a colocar num tableau de três diferentes graças femininas, ao lado de Aninhas e
de Gertrudes: Aninhas, do tipo romano-celta
[…] formas ágeis, flexíveis, e Gertrudes, mais feminina toda em que se estrema o puro sangue da raça germânica. Se o tempo não fosse
escasso, poder-se-iam referir duas ou três passagens em que elas são alvo de
discretas pinceladas brejeiras. Os próprios diminutivos traem um enlevo todo
masculino: o bispo trata Aninhas em diminutivos no momento em que se prepara,
não sei se para a violar se para a seduzir.
Resumindo, suponho que o essencial deste romance, afinal anti-histórico,
de Garrett, se encontra em coisas como estas: uma mascarada alegórica de sátira
ao cabralismo, isto é, à plutocracia bancária, à burguesia, à plebe instável,
ao clero e à aristocracia da velha ou fresca data no decénio de 40; um pouco de
pitoresco; e uns ecos em surdina daquela audácia liberyina que José Agostinho
Macedo denunciou no autor de O Retrato de
Vénus. Sobre este fundo, não chegam a ganhar grande consistência certos
consabidos lugares-comuns do romance gótico: a negra ingratidão, a prepotência
e o cinismo de um poderoso e do seu factótum, Pro Cão; a anagnórise, o
reconhecimento, teatral de pai e mãe, entre outros coups-de-théatre; o violento choque maniqueísta do Bem e do Mal». In
Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX,
Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.
Cortesia de Caminho/JDACT