quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX. Álbum de Família. Óscar Lopes. «… Gertrudes, mais feminina toda em que se estrema o puro sangue da raça germânica. Se o tempo não fosse escasso, poder-se-iam referir duas ou três passagens em que elas são alvo de discretas pinceladas brejeiras»

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De o Arco de Sant’Ana a Uma Família Inglesa
O Arco de Sant’Ana
«(…) Tal como Garrett expressamente declara, o que nesta obra há de mais vivo é o sabor forte e picante da localidade: o próprio autor chama a atenção para regionalismos vocabulares de Entre-Douro-e-Minho, traz-nos aos ouvidos o falatório popular, sobretudo feminino, como o da incalável Briolanja, e, a começar pela descrição do próprio Arco de Sant'Ana e do seu desabamento, Garrett dá muita expansão livre às recordações da sua infância no Porto e em Gaia. De resto, a narrativa põe manifestamente de pé um sujeito enunciativo com os seus objectos correlatos. Note-se, especialmente, que Vasco, o protagonista, é um estudante feito herói da liberdade popular, chefe, porta-bandeira e orador revolucionário, e todavia convicto de uma ascendência nobre por evidência das suas altas ambições conscientes. Curiosamente, o texto opõe as suas atitudes à dos demagogos burgueses que procedem através de ostensivas confraternizações plebeias. Vasco dirige a plebe, mas não se identifica com ela. O reconhecimento, como sendo seu pai, do bispo contra o qual conduz a revolta popular, é mais uma imagem daquele edipiano parricídio ideológico que em Garrett acentua as suas regressões e os seus remorsos, sobretudo a partir do momento em que, sob os Cabrais, o liberalismo lhe parece degenerar num novo feudalismo plutocrático.
Por outro lado, a condenação de dois crimes de lascívia, aquele de que o próprio Vasco nasceu por violação de Ester, uma bela judia, e aquele que o bispo se prepara para perpetrar em Aninhas, a jovem casada de vinte anos, não deixa de ter um orla de ambiguidade. Lembro-me de que, em época mais puritana do que a nossa, Fidelino de Figueiredo condenou a cena garrettiana da desfloração de Sara. Permito-me acrescentar que Garrett glosou, num poema juvenil, O Roubo das Sabinas, e ainda no romanesco rapto de D. Branca por Aben-Afan, o tema da mulher que gostosamente se rende a um golpe de audácia transgressiva. E, no próprio desfecho de O Arco de Sant’Ana, o autor não perde o ensejo de, espantosamente, transfigurar a Bruxa de Gaia numa bela mulher bem conservada, de quarenta anos, com o seu puro, puríssimo sangue da Arábia, respirando o queimor ardente do deserto, para o efeito de a colocar num tableau de três diferentes graças femininas, ao lado de Aninhas e de Gertrudes: Aninhas, do tipo romano-celta […] formas ágeis, flexíveis, e Gertrudes, mais feminina toda em que se estrema o puro sangue da raça germânica. Se o tempo não fosse escasso, poder-se-iam referir duas ou três passagens em que elas são alvo de discretas pinceladas brejeiras. Os próprios diminutivos traem um enlevo todo masculino: o bispo trata Aninhas em diminutivos no momento em que se prepara, não sei se para a violar se para a seduzir.
Resumindo, suponho que o essencial deste romance, afinal anti-histórico, de Garrett, se encontra em coisas como estas: uma mascarada alegórica de sátira ao cabralismo, isto é, à plutocracia bancária, à burguesia, à plebe instável, ao clero e à aristocracia da velha ou fresca data no decénio de 40; um pouco de pitoresco; e uns ecos em surdina daquela audácia liberyina que José Agostinho Macedo denunciou no autor de O Retrato de Vénus. Sobre este fundo, não chegam a ganhar grande consistência certos consabidos lugares-comuns do romance gótico: a negra ingratidão, a prepotência e o cinismo de um poderoso e do seu factótum, Pro Cão; a anagnórise, o reconhecimento, teatral de pai e mãe, entre outros coups-de-théatre; o violento choque maniqueísta do Bem e do Mal». In Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.

Cortesia de Caminho/JDACT