Gaélico para inglês
«Das cartas e outros documentos escritos nos dias primordiais da
Cristandade, poucos sobrevivem com uma autenticidade inquestionável. A maioria
destes foram escritos em latim. Eu dou como exemplo dois documentos da mesma
época do manuscrito aqui apresentado: O Confessio de São Patrício, escrito
por volta de 450 a. C. e as cartas da freira Egera, que escreveu o
relato da sua peregrinação ao Oriente no início do século quinto, para o
benefício das suas irmãs do norte de Espanha ou sul de França. Gwynneve, autora do texto aqui
traduzido, para além de escrever por volta de cinquenta anos após a época em
que escreveram Patrício e Egeria, estava na Irlanda e escreveu sobre a Irlanda.
Tal como Egeria, ela é uma mulher cujo nome e identidade não estão clarificados
em qualquer história do seu tempo. No entanto, as diferenças são mais
significativas do que as semelhanças. Ao contrário de Patrício e de Egeria, que
escreveram em latim eclesiástico (se bem que em estilos diferentes), Gwynneve escreveu em Gaélico, a sua língua materna.
Ela era instruída em Grego e Latim, como pode ser lido nos relatos das suas
tarefas. Pode-se especular que o uso do Gaélico, uma língua que lhe era tão
pessoal e amada, levou-a a dar detalhes da sua vida, pouco usuais noutros textos
desta época. Enquanto que existem narrativas eclesiásticas que incluem detalhes
da história do escritor (como aqueles de Patrício ou de Agostinho de Hipona),
a maior parte destes fazem-no ao serviço da conversão do escritor à cristandade,
relatos de pecado e salvação do autor. O estilo de Gwynneve foi claramente influenciado por estes escritores cristãos,
e pelos documentos romanos, tal como pelas escrituras detalhadas e seculares
daqueles filósofos que os estudiosos cristãos transcreveram, mas o tom dela foi
grandemente moldado pela tendência Gaélica de imagens poéticas
e de revelação emocional.
Neste período, a Igreja estava próxima de conseguir eliminar os muitos
movimentos hereges que abundavam nos primórdios da cristandade, incluindo a heresia
de Pelágio, à qual alude Gwynneve,
e as heresias Gnósticas, tais como o movimento Montanista. A
Igreja ameaçou os hereges com castigos severos, incluindo a morte; essa é a
razão muito provável pela qual este documento foi escondido e só recentemente
recuperado. O manuscrito foi encontrado numa escavação perto de Kildare, no
condado de Kildare, na Irlanda, aproximadamente a dois quilómetros do convento
dedicado a Santa Brígida. (A Santa Brígida
era uma manifestação cristã da deusa pagã Brígida, uma mulher que se diz ter
sido criada por um druida e convertida por Patrício). O manuscrito
original está na forma de codex, uma
série de fólios de pergaminho cosidos e encapados com pele de porco. Ligeiramente
danificado por manchas de água, foi descoberto numa caixa selada feita de barro
e ferro, entre outros artefactos dentro de um poço, ou um buraco estreito,
utilizado para guardar restos humanos, ofertas de agricultura e outros objectos
religiosos. De acordo com documentos arqueológicos e o folclore local, o poço
tinha outrora sido o local de um ritual que envolvia atirar cicuta fresca nas suas
profundezas duas vezes por ano, seguido de um festim em honra de um espírito ou
santo sem nome que é suposto dar conforto aos moribundos e às mães que estão de
luto pelos filhos mortos.
O codex, o único encontrado
no local, está datado por volta do ano 500 a. C.. O original foi escrito em
Gaélico e contém algumas frases em latim. Onde não existe uma palavra em
inglês equivalente, o termo Gaélico é mantido. As frases em latim foram
mantidas para manter o desejo original da escritora de as inserir como
excepções ao Gaélico.
Confissões de uma freira pagã. Declaração
Eu, Gwynneve, uma
pecadora deveras inculta e, além disso, fiel e totalmente desprezível para
muitos, apelo a Santa Brígida ou à deusa Brígida, qualquer que seja o nome pelo
qual queira ser chamada. Rezo para que ela, sendo a guardiã dos poetas, me
abençoe com palavras honestas e fortes. Eu sou o que se chama uma cele dê (uma servente de Deus, ou
freira), perto da idade de infertilidade, quando o ventre de uma mulher se
torna inútil e cabelos lhe começam a nascer no queixo. Vivo num colmo, entre um
aglomerado deles, feitos de pedra e situados na igreja de Brígida, um lugar
cheio de beleza mas sempre frio e húmido, excepto durante o Verão quando o
vento é verde. Sinto-me constantemente tentada a fazer uma pausa no meu
trabalho e a ficar lá fora, no monte, a contemplar o vale e as ondas de colinas
à distância.
Durante a maior parte dos dias e das noites vivo e trabalho no meu clochan (uma cela em forma de colmeia
feita de pedra), com uma vela de cera para iluminar o pergaminho». In Kate
Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance
Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.
Cortesia Ésquilo/JDACT