domingo, 17 de novembro de 2013

Iniciação e Mistério no Antigo Egipto. Rogério Sousa. «Depois, ordenou-me às claras e na presença de toda a gente que, durante os dez dias seguintes, me regrasse nos prazeres da comida, não provasse a carne de animal algum e me abstivesse do vinho»

Estátua romana de Ísis proveniente de Nápoles. Século II d. C. Com o manto ataviado com o habitual nó característico da representação helenística de Ísis, a deusa apresenta numa das mãos um vaso, enquanto na outra agita um sistro.
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A Iniciação egípcia nas fontes clássicas
«(…) Para além da relação entre a cripta de Osíris e o lago, o texto de Heródoto coloca em evidência a encenação nocturna destes mistérios, o que é igualmente referido no relato muito mais tardio de Apuleio, ‘O Burro de Ouro’, já no contexto do culto alexandrino de Ísis. Os cultos alexandrinos de Ísis e de Serápis constituem uma outra fonte tardia que, apesar de veicularem uma visão helenizada da tradição egípcia, não deixaram de marcar a visão ocidental dos mistérios egípcios. Estes cultos foram instituídos na nova capital do Egipto ptolemaico de modo a reflectir a estratégia política da nova elite dirigente. Nem Ísis nem Serápis eram divindades inventadas pelos soberanos lágidas. Serápis era a designação helenizada do deus User Hep, ou seja, a manifestação funerária do deus solar Ápis, o touro sagrado de Ptah que encarnava o poder de fertilidade associado à cheia e à luz. Também Ísis era uma divindade muito antiga e, na Época Baixa, era uma das divindades femininas mais populares. A helenização destes cultos traduziu-se no fundo na adopção de uma nova roupagem. A velha iconografia egípcia foi adaptada ao gosto e às convenções helénicas. Desse modo, os soberanos lágidas estabeleciam um denominador comum entre a população autóctone e a elite helenizada. Com esta nova roupagem, a difusão dos cultos alexandrinos fez-se de imediato por todo o mundo helénico e, mais tarde, pelo império romano. Na sequência desta difusão dispomos hoje de fontes arqueológicas e escritas que testemunham a universalização dos rituais iniciáticos destes cultos. No plano das fontes escritas, a narrativa de Apuleio sobre a iniciação de Lucius é crucial e invulgarmente detalhada, quando comparada com as narrativas acerca dos viajantes gregos.
A acção da narrativa de Apuleio desenrola-se em Cenchrés, porto de Corinto, num santuário de Ísis. A iniciação começa com um banho ritual que inaugura um período de purificação e abstinência:

Entretanto o sacerdote informou-me de que era chegado o momento e conduziu-me então a uma piscina próxima, rodeado de iniciados. Comecei por tomar o banho ritual; depois o sacerdote pediu a graça divina e purificou-me por completo com aspersões de água lustral. [...] Depois, ordenou-me às claras e na presença de toda a gente que, durante os dez dias seguintes, me regrasse nos prazeres da comida, não provasse a carne de animal algum e me abstivesse do vinho.

Ao cabo deste período, é celebrado em honra de Lucius um ritual que assinala o início do seu compromisso com os deuses:

Eu respeitei estas prescrições com notável abstinência. Finalmente chegara o dia destinado ao meu compromisso com os deuses; o sol declinava e trazia atrás de si o entardecer. Senão quando eis que confluem de todos os lados multidões de pessoas que, segundo o antigo ritual dos mistérios, me honram com presentes diversos. Em seguida, afastam para longe todos os não iniciados e revestem-me de uma túnica de linho a estrear, o sacerdote pega-me pela mão e conduz-me até à parte mais reservada do santuário.

Tal como Heródoto, Lucius reserva um respeitoso silêncio acerca do que aí viu e ouviu. No entanto, transmite-nos um conjunto de imagens cifradas que vale a pena conhecer:

Talvez o leitor desejoso de aprender se pergunte, com ansioso interesse, o que depois se disse e se fez. Di-lo-ia, se fosse lícito dizê-lo, e tu ficarias a saber, se te fosse lícito escutar. Porém, tanto a língua como os ouvidos iriam incorrer em falta idêntica, aquela por ímpia loquacidade, estes por temerária curiosidade. Em todo o caso, se estás talvez em suspenso por algum desejo religioso, não te irei atormentar com retardadas angústias. Escuta, por conseguinte, e crê, pois é pura verdade o que vais ouvir: acerquei-me dos confins da morte e, depois de pisar a soleira da morada de Prosérpina, fiz o caminho de regresso, transportado através de todos os elementos; vi o sol brilhar em plena noite, com uma luz cândida; acerquei-me dos deuses infernais e dos deuses celestiais, contemplei-os no rosto e adorei-os de perto. Aqui tens o meu relato e, ainda que o tenhas escutado, é forçoso que não o entendas.

Depois de passar a noite no santuário, Lucius é vestido, diante da estátua da deusa, por uma roupagem olímpica adornada com figuras multicolores de animais e é cingido por uma coroa de palma dourada. Depois o santuário é aberto e, tal como uma estátua viva do deus Sol, com um facho incandescente na mão direita, Lucius manifesta-se diante da multidão. Uma refeição festiva, com carácter sacramental, marcou o termo da iniciação.

Em seguida celebrei em enorme festa o dia da minha nascença para os sagrados mistérios, com uma agradável refeição e alegres encontros comensais.

Tal como se apresentava na sua versão helenizada, a iniciação aos mistérios de Ísis, embora envolta em segredo, não se afigurava tão exigente como aquela que Heródoto ou Pitágoras possivelmente encontraram nos templos egípcios». In Rogério Sousa, Iniciação e Mistério no Antigo Egipto, Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-56-4.

Cortesia da Ésquilo/JDACT