Confissões de uma freira pagã. Declaração
«(…) Trabalho como um insecto debaixo da sua abóbada de lama,
transcrevendo escrituras, dado que sou uma das poucas freiras que é instruída.
Sou rápida no meu trabalho porque o meu professor, Giannon, o Druida, era um perito na magia das
palavras e ensinou-me a não ser superficial nem impaciente. Acabei agora mesmo
a transcrição de sciathlúireach (orações de protecção de um dos livros de São
Patrício). Faltam só algumas horas para o sino tocar para os cânticos matinais,
mas eu não quero dormir. Há certas noites em que eu não durmo profunda e
longamente mas, em vez disso, pairo num mundo intermédio, entre pensamentos e
imagens selvagens. Às vezes, os mortos falam comigo e fico agitada. Nessas
alturas alivia-me escrever. Os pensamentos terríveis resultantes do que eu
testemunhei e ouvi encontram algum a paz quando os transformo em marcações
sobre o pergaminho. Eu não posso ficar calada perante o que me foi dado ver e
observar nem, de facto, seria correcto fazê-lo. É um dever sagrado saber a
verdade e contá-la.
A verdade tem um volume muito maior do que o corpo e a alma de uma
pessoa. Eu sou pequena, tanto em corpo como em alma, mas tentarei ser como a
formiga que carrega muitas vezes o seu próprio peso. Aqueles que lerem estas páginas,
tenham misericórdia de mim. Beati
immaculati in via (abençoados aqueles de caminho irrepreensível).
Que a cruz de Santa Brígida esteja
sob os
meus pés.
Que a manta de Maria me envolva os
ombros.
A protecção de Miguel sobre mim,
pegando na
minha mão.
No meu coração, a paz do Filho da
Graça.
Na minha alma, a protecção de todos
os bons
espíritos nesta feroz e linda
terra.
A minha túath (tribo
composta de um ou mais grupos de familiares ou clãs) era Tarbfhlaith,
onde eu nasci da minha mãe, Munrynn, e do meu pai, Clebd. Não
posso dizer muito sobre os seus antepassados, porque eles não se destacaram em
batalhas, excepto o pai da minha mãe e a irmã dele. Alguns já ouviram falar
deles como o Connacht e a Flaev. Ele era um finna
(guarda-costas real) do Alto Rei Loaguire, o chefe que recusou o
baptismo quando Patrício o ofereceu. Connacht e a sua irmã eram dois guerreiros
esguios que morreram durante os cinco anos da fome. Segundo se diz, a minha tia
pôs-se à frente do seu irmão para o proteger e caiu, atingida nas pernas.
Connacht, aparecendo por atrás dela, recebeu uma machadada na boca que lhe
cortou a cabeça na mandíbula. Flaev viveu vários dias enquanto o ódio cruel dos
seus inimigos, que tinha entrado nela através da perna ferida, lhe chegou ao
coração e a sufocou. Os feitos heróicos de Connacht e Flaev foram lembrados nas
canções que os nossos homens cantavam nos festins enquanto batiam na mesa com os
punhos.
Eu adorava ver os homens baterem com os punhos e fazerem um forte
rugido com as suas vozes. Eu adorava quando as mulheres, nestes festins,
rasgavam as suas vestes e mostravam os seus seios, num hino ao sacrifício e à
luxúria. Durante muitos anos, apoiei os cotovelos nas mesas dos festins para
ouvir cantar os nomes do meu avô e da minha tia. Mas as letras das canções eram
repetidas tantas vezes que se tornaram comuns como a palha. Depois de ter
viajado por outros lugares, fiquei a saber o quão pequena era a minha túath. O salão do chefe tinha apenas o
dobro do comprimento das numerosas cabanas que pareciam derramar-se por uma
clareira de lama, ao lado do lago chamado Oille. Eu não conseguia ser um
membro tão leal e dedicado à túath de
Tarbfhlaith quanto os outros, que se contentavam em cantar uma só canção
durante toda a vida e em falar frequentemente sobre porcos e aveia. Desde
criança, eu afastei-me muito da minha túath,
e até me tornei numa fortúath (estrangeira)».
In
Kate Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance
Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.
Cortesia Ésquilo/JDACT