A Viagem
«(…) Em menos de dez minutos, todos nós, homens
válidos, fomos reunidos num grupo. O que aconteceu aos outros, às mulheres, às crianças,
aos velhos, não pudemos esclarecer nem naquela altura nem depois: a noite
engoliu-os, pura e simplesmente. Hoje, todavia, sabemos que, naquela escolha
rápida e sumária, avaliara-se se cada um de nós podia ou não trabalhar
utilmente para o Reich; sabemos que nos campos, respectiyamente de Buna-Monowitz
e Birkenau, só entraram, do nosso comboio, noventa e seis homens e vinte
e nove mulheres e que de todos os outros, num total de quinhentos, nem um se
encontrava vivo dois dias depois. Sabemos também que nem sempre este, embora
ténue, princípio de discriminação em hábeis e inábeis foi seguido e que,
sucessivamente, se adoptou muitas vezes o sistema mais simples de abrir as portas
dos vagões, sem advertências nem instruções aos recém-chegados. Entravam para o
campo os que o acaso fazia descer de um lado do comboio; iam para o gás os outros.
Assim morreu Emília, que tinha três
anos; porque aos alemães parecia evidente a necessidade histórica de
matar os filhos dos judeus. Emília, filha do engenheiro Aldo Levi, de Milão,
que era uma criança curiosa, ambiciosa, alegre e inteligente; a ela, durante a
viagem no vagão cheio de gente, o pai e a mãe conseguiram dar banho numa tina
de zinco, em água morna que o degenerado maquinista alemão aceitara deixar pingar
da locomotiva que nos arrastava a todos para a morte. Desapareceram assim num
instante, traiçoeiramente, as nossas mulheres, os nossos pais, os nossos
filhos. Quase ninguém teve oportunidade de se despedir deles. Vimo-los durante
algum tempo como uma massa escura na outra ponta do cais, depois deixámos de os
ver. Surgiram entretanto, iluminados pelos faróis, dois grupos de estranhos
indivíduos. Avançavam em formação, em filas de três, com um curioso passo
arrastado, a cabeça descaída para a frente e os braços rígidos. Na cabeça
traziam um boné ridículo e vestiam um casaco comprido às riscas, que mesmo de
noite e de longe se via estar sujo e rasgado. Desenharam um amplo círculo à
nossa volta, de forma a não se aproximarem e, em silêncio, começaram a mexer
nas nossas bagagens e a subir e descer dos vagões vazios. Olhávamo-nos uns aos
outros sem uma palavra. Tudo era incompreensível e louco, mas uma coisa
tínhamos percebido: era esta a metamorfose que nos esperava. Amanhã, também nós
seríamos como eles.
Sem saber como, encontrei-me dentro de um camião
com mais trinta pessoas; o camião partiu na noite a grande velocidade; estava
coberto e não se podia ver para o exterior, mas pelos solavancos percebia-se
que a estrada tinha muitas curvas e covas. Estaríamos
sem escolta?... atirar-se? Demasiado tarde, demasiado tarde, estávamos todos
destinados a ir até ao fundo. De resto, cedo nos apercebemos de que não estamos
sem escolta: trata-se de uma estranha escolta. É um soldado alemão carregado de
armas: não o vemos porque a escuridão é cercada, mas sentimos o contacto duro
com ele todas as vezes que um solavanco do veículo nos atira a todos num molho
para a direita ou para a esquerda. Acende uma lanterna de bolso e, em vez de
gritar Ai de vós, almas perdidas,
pergunta-nos gentilmente um a um, em alemão e em língua franca, se temos
dinheiro ou relógios para lhe dar, dado que já, não iremos precisar deles. Não
é uma ordem, não é do regulamento: vê-se bem que se trata de uma pequena
iniciativa privada do nosso Caronte.
O facto suscita em nós raiva e riso e um estranho alívio.
No Fundo
A viagem não durou mais de vinte minutos. Depois, o camião parou,
viu-se uma grande porta, encimada por umas palavras fortemente iluminadas (a
lembrança destas palavras ainda me assalta nos sonhos): ARBEIT MACHT
FREI, o trabalho liberta. Descemos, mandaram-nos entrar para um local amplo
e vazio, fracamente aquecido. Temos tanta sede! O débil barulho da água nos radiadores
torna-nos ferozes: não bebemos há quatro dias. Porém, existe uma torneira: tem
em cima um letreiro, no qual se diz que é proibido beber porque a água está
poluída. Tretas, parece-me óbvio que o letreiro é um engano, eles sabem que estamos a morrer
de sede e põem-nos num local onde há uma torneira que diz Wassertrinken verboten.
Eu bebo, e encorajo os meus companheiros a fazer o mesmo; mas tenho de cuspir,
a água está morna e adocicada, cheira a pântano». In Primo Levi, Se Questo è um
Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta
Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.
Cortesia de Teorema/JDACT