terça-feira, 19 de novembro de 2013

Senhorinha de Basto. Memórias Literárias da Vida e Milagres de uma Santa Medieval. Pedro V. Boas Tavares. «A “Santa Senhorinha” arrastou junto do seu túmulo, peregrinações e romeiros, durante a Idade Média. A festa de “Santa Senhorinha” só foi introduzida no Breviário Bracarense no ano de 1724»

Cortesia de wikipedia

«Ainda não há muito tempo se admitia que, juntamente com algumas vagas crenças, de sabor popular, a onomástica constituísse a única sobrevivência, na Região do Barroso, do culto popular desta santa medieval do séc. X (do estimado amigo, Geraldo Coelho Dias, D. Sancho I, peregrino e devoto de Santa Senhorinha de Basto). Sobrevivência nortenha e regional, sendo ambos estes traços, como é natural, facilmente verificáveis na vizinha Região de Basto, aqui subsiste todavia, com alguma vivacidade, o culto a Senhorinha, patente nas promessas, ex-votos e asseio que sempre rodeiam o seu túmulo, albergado em modesto mas prestigioso templo paroquial, outrora conhecido como matriz, ou até, segundo Pinho Leal, como sé de Basto, e no qual se continuam a perpetuar a memória da morada terrena escolhida por esta monja, sua vida e virtudes. Sabendo-se que o culto eclesiástico se iniciou em 1130, por autoridade do arcebispo Paio Mendes, num tempo em que os prelados canonizavam nas suas dioceses, que a introdução da festa em calendários litúrgicos portugueses data do século XIII, e que a veneração a Santa Senhorinha arrastou junto do seu túmulo, incontestavelmente, grande cópia de peregrinações e romeiros, durante a Idade Média, gostaríamos de focalizar a nossa atenção na época moderna, para tentar percepcionar impulsos de continuidade ou descontinuidade nesse culto, até porque, um pouco surpreendentemente, a festa de Santa Senhorinha só foi introduzida no Breviário Bracarense de Rodrigo Moura Teles, no ano de 1724.
Propomo-nos trazer hoje à colação um outro vector de abordagem, porventura indiciador útil e fornecedor de elementos exemplificativos da atenção moderna consagrada a Senhorinha, no quadro do hagiológio nacional, e consistindo na exploração da memória literariamente construída da Santa. Descontados conhecidos e incontornáveis textos de hagiógrafos consagrados, que teremos ocasião de evocar, está praticamente por fazer o levantamento deste tipo de testemunhos. Também nós nos limitamos aqui à indicação de uma pista de investigação, já que não logramos organizar, para já, certamente mais por falta de prospecção do que por raridade de dos textos, um corpus literário digno desse nome. Por agora, optamos por centrar a nossa atenção, num exemplo de composição literária muito significativo de interesse por Senhorinha, sua vida e milagres, arrancado a um dos nossos cancioneiros barrocos, a Fénix Renascida, e a um dos seus mais consagrados autores, frei Jerónimo Baía. Referimo-nos à Loa que este poeta escreveu Em louvor de Santa Senhorinha Portugueza.
Autor de Varios Romances e Decimas, a diferentes assuntos, também a Loa consta, como diz Diogo Barbosa Machado, de um Romance muito largo». Está escrito em castelhano, mas da parte de frei Jerónimo Baía, prestigioso pregador de Afonso VI, ou até mais provavelmente do  organizador da Fénix Renascida, quis-se frisar o carácter português desta santa, apesar de muito anterior à nacionalidade. Professo em Tibães (1643), o monge-poeta, chamado outrossim ao desempenho das funções de cronista de S. Bento, invocava uma glória nacional e da congregação, mesmo se usava o castelhano, ele que, de resto, em verso celebrou também êxitos das armas portuguesas na Guerra da Restauração. O reivindicado carácter nacional desta santa parece acompanhar as tendências gerais do sentimento religioso e do afã hagiográfico em Portugal, à época, com notório investimento, por parte da coroa, no favorecimento do culto e festas aos santos mais fácil e popularmente reconhecíveis como tutelares e protectores do Reino, e na nacionalização daqueles outros que, como Santa Senhorinha, aparentemente se prestavam menos a tal emblematização. Uma tendência nacionalizante que vinha, afinal, de trás, como vemos com um curioso exemplo, dado pelo próprio duque de Bragança, futuro João IV, escrevendo em 30 de Abril de 1625, de Vila Viçosa, ao padre Jorge Ribeiro, então abade da Freguesia de Santa Senhorinha de Basto, ao pedir-lhe informações sobre as comemorações e festas a Santa Senhorinha, S. Gervásio e Santa Godinha, levadas a efeito naquela igreja, onde se veneravam os seus túmulos, porque também desejava festejar a estes sanctos portuguezes na sua capela.
Apresentando-se sob as vestes literárias de rato pobre, como aquel que Horacio pinta (alusão à fábula do rato do campo e do rato da cidade, da sátira do Venusino), frei Jerónimo Baía pede ao seu público benevolência, Sus mercedes mucho callen / Sus mercedes nada digan, / Pues mas urbana mi Musa / Se lo pide en cortesia, para a breve Loa que se propõe recitar: Oid del Raton un rato / la Loa mas exquisita; / Es cosa del otro mundo / Que al fin es de le Bahia...» In Pedro Vilas Boas Tavares, Senhorinha de Basto, Memórias Literárias da Vida e Milagres de uma Santa Medieval, Via Spiritus 10, 2003.


Cortesia de Via Spiritus/JDACT