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«No trono de Portugal sentaram-se, ao longo de quase oito séculos, duas
mulheres e trinta e dois homens. Destes, seis, solteiros ou casados, não
tiveram filhos: Sancho II, Sebastião I, cardeal-rei Henrique, Afonso VI, Pedro
V e Manuel II. Dos vinte e seis restantes, apenas dois. Manuel I e José I, não
terão tido filhos ilegítimos. Todos os outros foram (ou diz-se que foram)
pais de bastardos, nome porque são
entendidos já desde a Idade Média não só os filhos especificamente chamados naturais
mas também os espúrios e em geral todos aqueles que não são gerados de
verdadeiro e legítimo matrimónio, como escreveu Pascoal José Freire nas
suas Instituições
de Direito Civil Português. O rol destes bastardos, havidos fora do
casamento dos seus pais, nunca estará completo, tanto mais que muitos deles
nunca foram reconhecidos, o que torna difícil estabelecer com precisão o número
dos filhos da mão esquerda que os reis de Portugal tiveram. Em todo o caso,
pode afirmar-se com segurança que os bastardos reais, desde a fundação da Monarquia
até à implantação da República, se contam por várias dezenas. Na maior base de
dados genealógicos portuguesa, a Geneall, estão referenciados 77
filhos ilegítimos de 19 príncipes que reinaram em Portugal. Este número pode,
no entanto, pecar por defeito: só a Pedro de Alcântara, imperador do Brasil e
rei de Portugal, houve quem atribuísse, em 1826,
a paternidade de 43 bastardos!
Os bastardos reais atravessam a história da Monarquia Lusitana desde a
sua fundação até, quase ao seu termo. O
primeiro rei nasceu de uma bastarda, afirmando alguns que não era filho
de seu pai, o conde Henrique de Borgonha; bastardo era também o rei de Boa Memória que deu origem à segunda
dinastia; e um bastardo está na origem da Casa de Bragança, que, a partir de 1640, foi a Casa Real portuguesa. O
mesmo sucede, aliás, com a terceira dinastia, a dos Filipes de Espanha, directos
descendentes de Henrique de Trastâmara, que reinou em Castela como Henrique II
e era filho ilegítimo do rei Afonso XI. Muitos desses bastardos reais ocuparam
posições de relevo na corte e no país, sobretudo na primeira dinastia, quando
foram mais numerosos. Como se compreende: na
Idade Média, a bastardia inscrevia-se nas estruturas da boa sociedade.
Os filhos ilegítimos de Afonso Henriques, tal como os de Dinis I, por exemplo,
desempenharam funções de tanta importância e consequência como eram, por esse
tempo, as de mordomo-mor ou de alferes-mor. O bastardo de João I foi, em sua
vida, o principal senhor do reino, posição que Jorge, filho adulterino
de João II, só não alcançou porque o rei Manuel I não cumpriu inteiramente as
últimas vontades do seu antecessor. Outros bastardos régios foram figuras de
relevo na Igreja portuguesa, e um deles, filho de João V, deu origem à ilustre
Casa de Lafões.
Os filhos ilegítimos dos reis concorreram, além disso, com os seus
casamentos para reforçar o poder dos reis seus pais ou irmãos, aliando-se em
Portugal às famílias mais poderosas e, regra geral, renitentes em acatar os
poderes e as prerrogativas reais. Como notou José Augusto Pizarro, bastardos
reais constituíram um patamar
intermédio por onde passavam alguns dos contactos mais importantes entre a realeza
e as linhagens da alta nobreza. E não foram poucos os monarcas que,
casando os seus bastardos em grandes casas senhoriais, alimentaram com o seu sangue a prosápia das famílias
mais poderosas, ganharam o seu apoio, declarado ou silencioso, e nele escudaram
a sua política centralizadora. A esse propósito obedeceram, entre
outros, os casamentos dos bastardos de Afonso III ou de Dinis I, mas também o
de Afonso,
bastardo de João I, com a filha de Nuno Álvares Pereira (embora outras
razões possam explicar melhor este matrimónio) e, ainda, séculos depois, o
de D. Luísa, filha ilegítima de Pedro II, com o duque de Cadaval. O mesmo objectivo
de afirmação do poder real, aquém mas também além-fronteiras, foi prosseguido
com os casamentos de bastardos régios em reinos vizinhos ou amigos, para cuja
realização, aliás, concorreram as legítimas esposas dos monarcas reinantes (e
pais dos bastardos). Foi o que sucedeu, por exemplo, com o casamento de
Pedro Afonso, conde de Barcelos, filho ilegítimo de Dinis I, realizado em Aragão
com a empenhada ajuda da rainha Santa Isabel, sua madrasta, ou com o casamento
em Inglaterra de D. Beatriz, filha ilegítima de João I, para o qual foi
decisivo o concurso de D. Filipa de Lencastre». In Isabel Lencastre, Bastardos
Reais, Os Filhos Ilegítimos dos Reis de Portugal, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-989-555-845-2.
Cortesia de Oficina do Livro/JDACT