Mal por mal, antes Pombal, expressão
popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu
Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele
iniciadas.
«A rainha que sucedera no trono a seu pai, José I, queria ficar na
História como pessoa indulgente, caritativa e jamais movida pelas labaredas da
acrimónia e da vingança. Não gostava de Pombal, nunca gostara. Execrava a sua
sede de poder, a sua arrogância, os excessos do seu pulso de ferro e o desprezo
que nutria por quem tivera berço superior ao seu. Era um homem temível que,
pessoalmente, nunca lhe fizera qualquer agravo ou desconsideração, talvez por
estar ciente de que, mais tarde ou mais cedo, teria de lhe prestar contas, de
se ajoelhar à sua frente para lhe pedir perdão. Se dependesse somente dela, tudo
se resolveria com firmeza mas sem alarido, para não se acordarem nos túmulos fantasmas
antigos. Porém, o regresso de exilados como o duque de Lafões e de centenas de
jesuítas expulsos do país forçava a rainha a mostrar a firmeza do seu mando,
ordenando, entre outras medidas, a reabertura do processo dos Távora, com vista
à libertação e reabilitação de todos os que Pombal mandara condenar, banir e
executar.
Lisboa tornara-se uma cidade
anti-Pombal, como se um novo terramoto a abalasse, mas, desta feita, em
nome das injustiças que deviam ser reparadas e da limpeza da honra por que
tantos clamavam, sobretudo à porta das igrejas, onde narravam, com cópia de pormenores,
as malfeitorias de que haviam sido vítimas estando Sebastião José Carvalho Melo
no poder. Muita gente se amotinava reclamando a punição exemplar daquele a
quem, em tom de chacota, chamavam O
Cabeleira, e que agora, degredado nas suas terras de Pombal, padecia
dos pestilentos males do corpo por certo como punição divina por tanto mal ter
feito a gente piedosa e inocente, a avaliar pela veemência dos testemunhos que
ecoavam nas ruas, à mistura com lágrimas, preces e imprecações e súplicas. Com
tudo isto fazia o povo coro, repetindo as rimas que verberavam a honra, a
dignidade e a honestidade do marquês, antes temido e temível, até pelo porte
imponente que alguém em tempos comparara ao do rinoceronte enviado a Roma para
espanto do papa.
Raro era o dia em que a rainha não recebia em audiência quem fosse
queixar-se de Pombal e dos actos com que agravara Portugal e os portugueses.
Por vezes, agastada com a veemência dos testemunhos, dormitava agitada, e
depois retirava-se para se refrescar e rezar. Sentada no trono que fora de seu
pai, não podia furtar-se a esse encargo, mas estava ciente de que governar
devia ser coisa de outra índole e que o seu tempo não podia ser todo consumido com
as queixas que envolviam os muitos anos de presença de Pombal no poder. Se
tinha de ser castigado, que fosse, mas nunca se devia perder de vista que
condená-lo seria também condenar a memória do reinado de seu pai, que Sebastião
José engrandecera com muitas medidas severas, mas justas e oportunas. A rainha sabia
até que ponto o rei José I confiara no seu ministro, na sua competência e no
seu poder de decisão, ciente de que nunca dele partiria qualquer maquinação ou
manobra sediciosa que pudesse fazer perigar a sua autoridade real.
Lidava a rainha com um drama de todas as horas: Pombal já pertencia ao
passado, mas permanecia obstinadamente presente, desde os pregões populares e
das rimas dos cegos até aos sermões dos jesuítas regressados à grandiloquência
vingativa e pomposa dos púlpitos. Quisera a rainha ver de vez aquele assunto
selado e arquivado, mas faltava cunhá-lo com um libelo acusatório que mantivesse
Pombal em Pombal, a morrer lentamente, como se agonizasse num tribunal imaginário,
respondendo a múltiplos quesitos, enquanto as feridas corporais se abriam,
fétidas e dolorosas, a febre aumentava e a comichão o deixava sem posição nem
sossego. Ainda que não houvesse o propósito real de o fazer subir ao cadafalso,
era necessário que o povo soubesse que o ex-governante não sairia impune e
seria sujeito a uma sentença talhada para o ferir muito mais na honra do que na
esperança de vida, já de si tão minguada, tão fugidia. A rainha castiga, mas
sem derramar sangue. Decreta contra Pombal, que se vê privado de títulos e
honras, mas, ao mesmo tempo, louva a sua acção como estadista. Os perseguidos,
os degredados, os espoliados, os que vinham do reinado antigo de João V, querem
mais, exigem que se vá mais longe, que role pelo menos uma cabeça. Mas Maria
limita-se a fazer cair o medalhão que liga Pombal a seu pai, no pedestal da
estátua, no Terreiro do Paço. Para ela, é quanto basta, estando nas suas mãos e
não em quaisquer outras o ceptro do mando real». In José Jorge Letria, Mal por Mal,
Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor,
Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.
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