Escolher modos de não agir foi
sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida. In Bernardo Soares
«(…) O moço estava à espera, do lado de dentro do quarto, com a porta
aberta. Ricardo Reis viu-o da entrada do corredor, sabia que, em lá chegando, o
homem iria avançar a mão serviçal, mas também imperativa, na proporção do peso
da carga, e enquanto caminhava notou, não se apercebera antes, que só havia
portas de um lado, o outro era a parede que formava a caixa da escada, pensava
nisto como se se tratasse de uma importante questão que não deveria esquecer,
realmente estava muito cansado. O homem recebeu a gorjeta, sentiu-a, mais do
que a olhou, é o que faz o hábito, e ficou satisfeito, tanto assim que disse,
senhor doutor, muito obrigado, não poderemos explicar como o sabia ele, se não
vira o livro dos hóspedes, é o caso que as classes subalternas não ficam a
dever nada em agudeza e perspicácia às pessoas que fizeram estudos e ficaram
cultas. A Pimenta só lhe doía a asa duma omoplata por mau assentamento, nela,
duma das travessas de reforço da mala, nem parece homem com tanta experiência
de carregar. Ricardo Reis senta-se numa cadeira, passa os olhos em redor, é
aqui que irá viver não sabe por quantos dias, talvez venha a alugar casa e
instalar consultório, talvez regresse ao Brasil, por agora o hotel bastará,
lugar neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa. Para além das
cortinas lisas, as janelas tornaram-se de repente luminosas, são os candeeiros
da rua. Tão tarde já. Este dia acabou, o que dele resta paira longe sobre o mar
e vai fugindo, ainda há, tão poucas horas navegava Ricardo Reis por aquelas
águas, agora o horizonte está aonde o seu braço alcança, paredes, móveis que
reflectem a luz como um espelho negro, e em vez do pulsar profundo das máquinas
do vapor, ouve o sussurro, o murmúrio da cidade, seiscentas mil pessoas
suspirando, gritando longe, agora uns passos cautelosos no corredor, uma voz de
mulher que diz, Já lá vou, deve ser criada, estas palavras, esta voz. Abriu uma
das janelas, olhou para fora. A chuva parara. O ar fresco, húmido do vento que
passou sobre o rio, entra pelo quarto dentro, corrige-lhe a atmosfera fechada,
como de roupa por lavar em gaveta esquecida, um hotel não é uma casa, convém
lembrar outra vez, vão-lhe ficando cheiros deste e daquela, uma suada insónia,
uma noite de amor, um sobretudo molhado, o pó dos sapatos escovados na hora da
partida, e depois vêm as criadas fazer as camas de lavado, varrer, fica também
o seu próprio halo de mulheres, nada disto se pode evitar, são os sinais da
nossa humanidade.
Deixou a janela aberta, foi abrir a outra, e, em mangas de camisa,
refrescado, com um vigor súbito, começou a abrir as malas, em menos de meia
hora as despejou, passou o conteúdo delas para os móveis, para os gavetões da
cómoda, os sapatos na gaveta-sapateira, os fatos nos cabides do guarda-roupa, a
mala preta de médico num fundo escuro de armário, e os livros numa prateleira,
estes poucos que trouxera consigo, alguma latinação clássica de que já não
fazia leitura regular, uns manuseados poetas ingleses, três ou quatro autores
brasileiros, de portugueses não chegava a uma dezena, e no meio deles
encontrava agora um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade,
esquecera-se de o entregar antes do desembarque. A esta horas, se o
bibliotecário irlandês deu pela falta, grossas e gravosas acusações hão-de ter
sido feitas à lusitana pátria, terra de escravos e ladrões, como disse Byron e
dirá O'Brien, destas mínimas causas, locais, é que costumam gerar-se grandes e
mundiais efeitos, mas eu estou inocente, juro-o, foi deslembrança, só, e nada
mais. Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler,
apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert
Quain, irlandês também, por não singular coincidência, mas o nome, esse sim, é
singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler. Quem,
repare-se, Quain. Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o
achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso,
razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da viagem e a sugestão do
título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto
era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial, uma
vulgar história de assassínio e investigação, o criminoso, a vítima, se pelo
contrário não preexiste a vítima ao criminoso, e finalmente o detective, todos
três cúmplices da morte, em verdade vos direi que o leitor de romances
policiais é o único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não é
como sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história. E há
papéis para guardar, estas folhas escritas com versos, datada a mais antiga de
doze de Junho de mil novecentos e catorze, vinha aí a guerra, a Grande, como
depois passaram a chamar-lhe enquanto não faziam outra maior. Mestre, são
plácidas todas as horas que nós perdemos, se no perdê-las, qual numa jarra, nós
pomos flores, e seguindo concluía. Da vida iremos tranquilos, tendo nem o
remorso de ter vivido». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo
Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9
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