O Profeta do Orvalho
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Visto este quimono com pássaros estampados
e sou eu que ganho asas para a exaltação do voo,
para a aventura azul de uma viagem circular
em redor dos cumes brancos e das crateras adormecidas
dos vulcões onde a lava hibernou e se fez pedra.
Vestido assim, sou um ser raro e inclassificável
que as fotografias não explicam
e a memória dos meus olhos não entende.
Vêem-me assim vestido, com as minhas barbas longas,
e mesmo que me dediquem atenção e afecto
só me podem sentir como estrangeiro,
eu que sou de todos os lugares e de lugar nenhum,
eu que sou do sítio da saudade de já não ter pátria
sem nunca ter consentido que ela morresse em mim.
Como eu invejo a coragem altiva dos samurais,
que mascara de aço a sensibilidade quase feminina
de quem sabe morrer por um orgulho ferido.
Desembainhava o meu sabre guerreiro,
na beligerância de quem enfrenta o desespero,
e decapitava nuvens e sombras, decepava cerce
a ignomínia de rumores antigos, e depois
cortava o fio que me prende à existência.
Mas eu não sou um suicida: eu preciso de viver
para lançar ao vento o fel das minhas queixas
e para encontrar nas mulheres amadas
o refúgio e a paz que o casulo das noites
insistentemente me nega, como se eu fosse
a alma penada de quantos amei e já partiram.
Poema de Wenceslau Moraes, in ‘O Profeta do Orvalho’
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