«O comboio precipitava-se na noite de Novembro. Ele deitou um olhar ao
relógio: como é costume, o expresso de Roma estava com duas horas de atraso no
trajecto italiano. Suspirou: não se chegaria a Paris antes das 27 horas... Procurou
instalar-se de modo mais confortável, passando o indicador entre o colarinho de
celulóide e o pescoço. O padre Andrei não estava habituado a este traje de
clérigo, que só usava para sair da abadia, o que era raro. E estas carruagens italianas
deviam datar de Mussolini! Os assentos a imitar cabedal, duros como bancos de
um parlatório ou de um mosteiro, uma janela que é possível baixar até, à barra
de apoio a um nível muito baixo, nada de ar condicionado... Enfim, só faltava
uma hora. As luzes da estação de Lamotte-Beuvron acabavam de ficar para trás a
uma velocidade estonteante: sempre, nas longas linhas rectas de Sologne, o
expresso atingia a sua velocidade máxima. Vendo o padre a agitar-se, o
passageiro atarracado sentado à frente dele desviou os seus olhos castanhos do
jornal e esboçou-lhe um sorriso, que não iluminou o seu rosto de tez baça. Sorriu
apenas com os lábios, pensou Andrei. Os olhos permanecem frios como uma pedra
do rio Loire…
O expresso de Roma transportava frequentemente uma população clerical que
o fazia parecer-se com uma sucursal do Vaticano. Mas neste compartimento só estava
ele e esses dois homens silenciosos: os outros lugares, apesar de reservados,
continuavam vazios desde a partida. Deitou um olhar ao segundo viajante, enfiado
no ângulo da esquina do corredor: um pouco mais velho, elegante e loiro como o
trigo. Parecia dormir, os seus olhos estavam fechados, mas por momentos tocava
piano com a mão direita sobre o seu joelho, a mão esquerda mantinha acordes
sobre a coxa. Desde a partida que só tinham trocado uns magros cumprimentos, em
italiano, e Andrei tinha reparado no seu forte sotaque estrangeiro, sem conseguir
identificá-lo. Europa de Leste?
O seu rosto era juvenil, apesar de uma cicatriz que começava na orelha esquerda
perdendo-se no ouro dos cabelos. Este hábito que tinha de observar os
pormenores... Vinha-lhe sem dúvida de toda uma vida debruçado sobre os
manuscritos mais obscuros. Apoiou a cabeça contra o vidro e olhou
distraidamente para a estrada que acompanhava a via do caminho-de-ferro.
Havia já dois meses que deveria ter enviado para Roma, traduzido e
analisado, o manuscrito copta de Nag
Hamadi. A tradução, conseguira-a rapidamente. Quanto ao relatório de
análise que deveria acompanhá-la! Não tinha conseguido redigi-lo. Era
impossível dizer tudo, para mais por escrito. Demasiado perigoso. Tinham-no então convocado. Nos
escritórios da Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga Inquisição (maldita), não conseguiu escapar às perguntas
dos seus interlocutores. Teria preferido não lhes falar dessas hipóteses,
refugiar-se nos problemas técnicos da tradução. Mas o cardeal e, sobretudo, o
temível minutor, empurraram-no para o seu reduto obrigando-o a dizer
mais do que desejava. Tinham-no depois interrogado na laje de Germigny: onde os
rostos se fecharam mais um pouco, Finalmente, tinha ido à reserva da Biblioteca
Vaticana, onde o passado doloroso da sua família o alcançou bruscamente, talvez
fosse o preço a pagar para ver, finalmente, a prova material daquilo que há
muito suspeitava. Tinha então sido forçado a abandonar precipitadamente San
Girolamo, retomando o comboio para a abadia: corria perigo. O que ele queria era paz, apenas paz. O seu
lugar não estava no meio destas maquinações, não estava em casa em Roma. Mas
haveria ainda algum lugar em que
estivesse em casa? Ao entrar na abadia, tinha mudado de pátria pela segunda
vez, e a solidão tinha-se apoderado dele, Agora, o enigma estava resolvido. O
que iria dizer ao padre Nilo no seu
regresso? Nilo, tão reservado, e que tinha já percorrido, sozinho, uma
parte do caminho… Colocá-lo-ia na via certa. O que ele tinha descoberto ao
longo de toda uma vida de investigação, Nilo teria que o descobrir por si só. E
se lhe acontecesse alguma coisa... Nilo seria digno de transmitir por sua vez».
In
Michel Benoît, Le Secret du Treizième Apôtre, Éditions AlbinMichel, 2006, O Segredo
do 13º Apóstolo, Sicidea, Sant Vicenç dels Horts, 2007.
Cortesia de Sicidea/JDACT