«(…) Há muito que o cardeal desejava visitar o novo hospital, a cuja
abertura falhara por andar em viagem. Da jornada, que o levara até junto dos
seus melhores amigos, os seus amigos do Tribunal do Santo Oficio (maldito), reunidos a discutir se pecados mouros
eram tão graves quanto pecados de judeus ou de putas desabrigadas e se
curandeiras seriam diferentes em seu pecar de bruxas e meretrizes, da jornada
trouxera muitas razões de felicidade. Nunca se esqueceria do espectáculo santo
daquele auto-de-fé em que participara, nem do cheiro que exalava dos corpos
purificados a fogo bento que extraía os demónios de dentro das criaturas
perdidas... Apenas os dias que levara enjoado, de barco, penitência estuporada
que Deus lhe impusera espantosamente mas que aceitara com a resignação mais
piedosa, marcavam com nuvem negra essas felizes memórias. Mas a menos que o
homem venha a voar, uma coisa improvável e que Deus não desejaria, nada
há mais rápido, seguro e moderno do que uma viagem marítima.
Assim pensando, foi o cardeal encontrar Ysla, o médico espanhol que se
preparava para socorrer, por emergência, um chagadinho muito penado que
acabara de entrar no hospital. - Como sabeis - declarou Ysla ao cardeal, detendo-se
ambos no corredor que dava à enfermaria dos chagados, como sabeis eu
aqui só trato da sífilis. E, perdoe-me a expressão, meu santo, graças a Deus
cada vez menos me sobra que fazer. - Não meteis Deus nas andanças vis dos
homens, meu caro físico. - Perdoai, meu santo. - Como sabeis, as mulheres
nasceram para o pecado e os homens, quase todos, para pecar. A tentação... A
tentação é que é o desafio. Um desafio que o céu nos impõe para a capacidade da
nossa salvação. - Não concordo, e peço perdão. Olhe, padre, tenho aí uma
cristaleira que se remiu de erros antigos e eu não quero outra para trabalhar.
E isso queria dela, mesmo se aos erros velhos retornasse.
- Tendes boa companhia de
trabalho... - É vero. Para além da citada, rameira sinceramente convertida,
tenho ainda dois físicos de ajuda, dois cirurgiões, enfermeiros, dois
cristaleiros machos, um barbeiro sangrador e está-me prometido um catareiro
novo que o que tenho não chega para aviamento. - Só me parece que não agrade a
Deus uma cristaleira e outras mulheres que para aqui tendes em artes tão machas
como são as de curar... - Que dizeis,
padre?... Pois se parece que até Maria Madalena ou outra do seu grupo
deu um clister a um dos apóstolos, por emergência, salvando-o de perecer por
sufocação de fezes... - Nunca li tal nas Sagradas Escrituras. - Pois se
foi um padre do Santo Oficio (maldito) quem
mo contou... - Assim sendo, Deus saberá... - Que sabe, que sabe... Seu filho
homem, Cristo, terá testemunhado pois andava perto... - Mas, dizei-me, o
hospital é assim tão bom como vai
soando? - Que Deus guarde o rei por tê-lo feito! É bom, é, meu santo...
- Que Deus guarde então seu
primo rei, a esse também, por tê-lo pensado e encomendado... Dizei-me: alguém aqui sabe de cirsotomia, dessa boa
arte de extirpação de varizes? - Não temos casos desses. As prioridades
são outras. Repare, há por aí quem apareça com veias de perna maiores do que
cordões de barca, algumas já arrebentadas... Mas quem é que se importa com extirpar varizes? Isso é
volatina, em comparação às moléstias que tratamos... Â conversa foi interrompida
pela chegada de um homem muito robusto, de longas vestes ensanguentadas, que
assomou a uma janela, gritando: - Ysla, Vossa Mercê não tem já de apressar-se;
finou-se-nos o chagadinho que ia socorrer... Ysla suspirou e olhou,
enviesado, o cardeal: - Labor e atarefações... Não se pára neste hospital... - E este quem é? - quis saber o cardeal.
- É Luís, o catareiro. - Que tarefa
desenvolve? - Cura hérnias, tira pedras, extirpa lombinhos, trata de
chagas e alporcas e até de cancros e corrimentos. E é mestre a endireitar
espinhelas. - E à caganeira, faz
mister? - Não é sua especialidade, nem a minha, talvez ele se ajeite
que eu evito... Porque o perguntais?
Acaso... - Não eu, que me seguro, e, baixando a voz, o cardeal confidenciou: -
É El-Rei que se rebola numa cagamerdeira imensa». In Alexandre Honrado, Os
Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
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