«(…) A questão do envolvimento das forças locais coloca-se de modo bastante
diferente, quando se põe o problema da centralidade comercial da cidade. Na
verdade, Goa interferia de forma mais ou menos directa na economia dos vários
estados já referenciados. Era uma escápula de comércio fundamental. Os cavalos
que vinham de Ormuz entravam na Índia pelas portas de Goa, um dos raros pontos
de passagem para o interior. No plano económico, o subcontinente indiano era
marcado, grosso modo, pela existência de dois grandes blocos que se podem rotular
como estados marítimo-comerciais e estados agrários. Os estados continentais
mais poderosos da Índia, quer no caso muçulmano quer no hindu, não se
encontravam directamente empenhados nos interesses referentes à actividade
comercial marítima. Pelo contrário, baseavam a sua economia no produto das
actividades agrícolas. Porém, quando pensamos em Goa, esses estados não podem ser
excluídos, uma vez que, embora apartados daqueles interesses, estavam
dependentes dos abastecimentos de cavalos árabes para a sustentação dos respectivos
exércitos.
Nestes estados marítimos de pequena dimensão o comércio era deixado ao
cuidado dos indivíduos islamizados, uma vez que os hindus estavam
impossibilitados de o praticar. O islamismo representava uma ideologia muito
mais favorável às trocas comerciais do que o hinduísmo. Os islamizados tomavam,
assim, a seu cargo, a condução dos negócios comerciais: os Mapilas, filhos oriundos
dos casamentos temporários entre marinheiros persas e árabes com mulheres de
castas baixas, e que eram educados na religião do pai, dispersavam-se pelos
portos do Malabar, sendo embora minoritários em Calecut, e estavam
especializados no comércio da Índia em
Índia; os Pardexis, ou seja, todos aqueles que não eram naturais do Kerala,
incluindo não só turcos, magrebianos e árabes mas também indianos, que estavam
situados acima de tudo em Calecut detinham grande influência comercial. Os portugueses
começaram por ter conflitos com os Pardexis, mas cedo desenvolveram
relações comerciais com os Mapilas de Calecut, Cochim e
Cananor. As receitas destes estados marítimos estavam dependentes do comércio
aí praticado, na medida em que decorriam da cobrança de taxas alfandegárias. Aquelas
que derivavam da terra representavam um valor mais reduzido, se bem que em
alguns casos se situassem aí os centros produtores de pimenta e gengibre. Estes
reinos eram objectivamente opositores dos portugueses, por causa da competição
em torno do controlo do comércio. Porém, foi junto deles que se estabeleceram
muitos dos acordos mais duradouros. Cochim é disso exemplo. Essa harmonia tornou-se
possível porque nenhum destes estados marítimos procurava influenciar grandes
áreas comerciais. As diferentes rotas eram dominadas por determinado povo ou
agrupamento político, o que não entrava em choque com a perspectiva e prática
portuguesas de controlo mais alargado e tendencialmente globalizante das rotas.
Mas a interferência dos portugueses envolvia igualmente o Egipto e
Veneza, que estavam comprometidos no comércio das especiarias, pela via do mar
Vermelho. Isto significa que a oposição aos portugueses não vinha apenas da
Índia mas também do Mediterrâneo oriental. Não nos esqueçamos que Afonso de
Albuquerque e o Conselho dos Capitães decidiram avançar para a
cidade de Goa justamente porque foram informados de que os rumes aí se instalavam
para proceder à reforma da respectiva armada. Por isso, os interesses do
Mediterrâneo oriental projectavam-se no próprio Índico e não deixaram de estar
presentes no momento em que foi decidido investir contra Goa. Goa beneficiava,
assim, de uma posição estratégica relativamente aos reinos locais. A sua
conquista esteve naturalmente relacionada com os próprios equilíbrios entre as
forças políticas indianas. A intervenção dos portugueses fora solicitada pelos
reis aliados, que lhes haviam pedido ajuda na luta contra inimigos seus que,
assim, se tornavam inimigos dos portugueses. A cidade era um ponto potencial de
fixação dos rumes que, se a tomassem, garantiriam também um controlo sobre o
mar Roxo e a continuidade da interferência do Egipto e de Veneza no comércio
das especiarias. Do ponto de vista da estratégia global do Índico, constituía
um posto decisivo para que os portugueses pudessem passar a cobrir as redes
comerciais». In Catarina Madeira Santos, Goa é a Chave de toda a Índia. Perfil
Político de 1505-1570, colecção Outras Margens, 1999, ISBN 972-8325-96-7.
Para a Ofélia e Álvaro José. Que estejam em Paz.
Cortesia de Outras Margens/JDACT
Cortesia de Outras Margens/JDACT