Os Descobrimentos e o Tráfico de Escravos
«(…) Estas práticas de pirataria e assaltos à mão armada não eram
condenáveis. Pelo contrário, estavam em sintonia com as actividades dos nobres,
que procuravam enaltecer-se com honra e proveito nos feitos de armas. A acção
dos traficantes resumia-se aos ataques à mão armada, a correrias ao sabor do
acaso, ferindo, matando, filhando negros, sempre movidos pela cobiça do ganho e
por um idealismo cruzadista, à sombra do qual os que morressem seriam
absolvidos de culpa e pena. A honra e o heroísmo estavam aqui patentes na luta
contra um adversário perigoso e não cristão. O comércio pacífico não era
próprio de um nobre, nem lhe dava ocasião de atingir esse ideal de honra e
heroísmo, tão enraizado na mentalidade da época. Por cometer um feito heróico
desta envergadura, ao fazer os primeiros prisioneiros na costa de África, é que
Antão Gonçalves foi armado cavaleiro. Não era com facilidade que se obtinham estes
cativos. A precária sedentariedade do litoral saariano levava a uma contínua
repetição dos assaltos predatórios, que muitas vezes não tinham qualquer
resultado ou acabavam num reduzido número de cativos. O clima de agressividade
assim gerado, que não facilitava o contacto com as populações locais, levou a
que se procedesse à substituição do método tradicional pela aquisição de
escravos através do resgate. Ao longo dos anos de 1444, 1445 e 1446, tanto o regente Pedro,
como o infante Henrique, tentaram remediar esta forma não rentável de
fazer cativos, substituindo o filhamento pelo comércio.
Gomes Pires foi um dos enviados que, sucessivamente, ao longo daqueles
anos tentou impor o trato de mercância no rio do Ouro. Mas os obstáculos
encontrados foram inúmeros. Uns resultavam da própria dificuldade em
estabelecer trocas pacíficas, outros tinham origem no facto das práticas de
pirataria e de roubo estarem muito enraizadas nos mercadores. De tal maneira
que Gomes Pires, na última das suas viagens, desiludido com as experiências
anteriores, tomou pela força através de vários assaltos, 79 cativos. Só entre 1446
e 1448, esta situação se viria a modificar. A partir daí os escravos
passaram a ser obtidos por escambo ou por simples compra e venda. Desde então o
tráfico desenvolveu-se com a velocidade de uma praga. As incursões iniciais de
Antão Gonçalves, Tristão, Lançarote e tantos outros, tinham cedido lugar a um
comércio regular.
Por seu lado, a Igreja Romana dava apoio incondicional às práticas expansionistas
dos portugueses. Os papas saudaram sempre com certa efusão as novas vitórias
dos navegadores lusitanos, selando nas bulas o percurso das conquistas e a
anuência ao domínio efectivo de Portugal naquelas regiões. A Santa Sé não só
autorizou os planos de incursão e de conquista das terras dos infiéis, mas
também declarou a sua sujeição aos reis de Portugal e sucessores. Ao aprovar
esta nova cruzada em 1441, o papa
Eugénio IV concedia ainda a todos e a
cada um que na dita guerra e batalha forem, por autoridade apostólica e por o
teor dai letras [...] comprida perdoança de todos seus pecados, dos quais de
coração sejam contritos, e por boca confessados com o fim de que esses fiéis cristãos com maior fervor se
movam e animem à dita guerra. Nesses actos da Igreja eram comuns as
referências à legitimidade da redução dos infiéis à escravidão, como do seu
filhamento ou comércio. As bulas pontifícias Dum Diversus e Divino Amore
Communiti, expedidas por Nicolau V em 18 de Junho de 1452, concederam ao rei de Portugal o
direito de conquista dos muçulmanos, pagãos e outros infiéis inimigos de
Cristo, incluindo os respectivos reinos, senhorios, territórios, possessões e bens
(móveis ou imóveis). Autorizavam, além disso, a escravidão perpétua desses
mouros, pagãos e demais infiéis. O mesmo papa, na bula Romanus Pontifex, datada
de 8 de Janeiro de 1454, reiterou à
coroa portuguesa autorização para submeter e converter os povos encontrados,
até mesmo aqueles que não tivessem recebido ainda influência da religião
muçulmana. Sob este aspecto, não são menos elucidativas outras bulas, como as
de Calisto III de 13 de Março de 1455,
de Sixto IV de 21 de Junho de 1481 e
de Leão X de 3 de Novembro de 1514,
nas quais se citam os escravos e o ouro como os principais objectivos do
comércio peninsular na costa africana. Este comércio era considerado um meio
para a introdução da religião cristã naquelas nações bárbaras ou, pelo menos, a
salvação de algumas almas que, caso contrário, para sempre estariam perdidas no
meio da gentilidade». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao
Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de
Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.
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