sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Confissões de Uma Freira Pagã. Romance histórico. Kate Horsley. «… mais ninguém me olhava nos olhos nem me reconhecia força. Os outros membros do meu lar acreditavam no terror como método de nos mantermos juntos, e contavam histórias da solidão, da dor e doença e da crueldade dos elementos»

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Declaração
«(…) Quando passávamos uma poça escura, ela conseguia dizer-me qual o espírito que lá vivia, talvez um dos antigos, que estava arrependido de ter perdido a forma humana e procurava agarrar uma criança para a habitar. Também havia espíritos que escutavam os desejos e tentavam realizá-los, dizendo certas palavras nas águas escuras, de tal modo que as palavras subiam como bolhas até, à superfície. Quando seguia a minha mãe a estes lugares, observava sempre atentamente o seu cabelo preto que lhe cobria os ombros e as costas, como uma capa fina a esconder uma veste em trapos. Eu tinha medo de a perder nas profundezas dos bosques, porque, como já disse, eu era pequena e frágil; mas ela tratava-me como se eu fosse forte, andando para a frente sem qualquer preocupação que eu pudesse deixar-me ficar para trás, ou que fosse agarrada por uma entidade mais forte que eu. A minha mãe partia do princípio que eu não era fraca, que os meus ossos eram sólidos e emolduravam o meu espírito. Uma vez ela disse-me, … tu és muito inteligente Gwynneve. Ela disse-me isto como se fosse um segredo maravilhoso e perigoso. Ela aconselhou-me a utilizar a minha inteligência para me livrar das obrigações de uma mulher casada com um homem que cria porcos, ou, pelo menos, para esconder segredos dele. Porque ela fazia uma vida separada do marido, meu pai, que sabia pouco do assunto e se limitava a ouvir elogios daqueles a quem ela curava com as suas ervas. Uma enorme tristeza invadia-a quando me olhava longamente, como se antevesse os acontecimentos que me iriam ferir, sem que ela os pudesse evitar.
Nesses tempos, mais ninguém me olhava nos olhos nem me reconhecia força. Os outros membros do meu lar acreditavam no terror como método de nos mantermos juntos, e contavam histórias de mortes horríveis, da solidão dos cadáveres, da dor e doença e da crueldade dos elementos: ventos que arrancavam os braços a um homem, fomes que faziam as mulheres comer as suas próprias crianças. Referir o sofrimento provocado por este mundo castigador era dar uma lição necessária, e apontar as fraquezas de alguém era uma forma de incitá.lo a ser forte. Por isso, o meu pai e a minha irmã diziam-me que eu vivia demasiado em sonhos e que os meus seios nunca iriam ser suficientemente grandes para agradar a um homem ou para alimentar uma criança. O meu pai acusava aminha mãe de me fazer passar fome, enchendo-me de histórias em vez de comida. Todos na minha túath passavam fome, especialmente durante os meses da geada grossa. Mas eu desejava mais as histórias da minha mãe, que me aliviavam, do que a comida. Eu ouvia-a a entrelaçar palavras e a criar mundos como que se fosse uma deusa. As palavras vinham da boca dela, dissipando a minha solidão, mesmo quando ela não estava comigo. Ela começava todas as histórias com a frase: Foi-me dado que… Quando eu lhe perguntei quem é que lhe tinha dado estas histórias, ela chocalhava o seu cíorbolg, no qual ela tinha umas pequenas pedras lubrificadas que, dizia ela, a entretinham com histórias. Eu comecei então a conhecer as palavras como coisas imortais, que se podiam ver e tocar, cada uma tendo uma cor e uma forma, como uma pedrinha que nunca padece de doença nem morre. Eu sonhei com sacos de pedrinhas polidas, tendo cada saco uma história e contendo uma jóia preciosa de entre as muitas pedrinhas, ou uma pedra preta, que era o olho da morte.
O meu pai e a minha irmã, e outros na túath, tentaram ensinar-me que eu amava as palavras em demasia, mas o que eu amava era a liberdade das palavras. Até o homem que roubou um broche à filha do Chefe e foi posto numa gaiola de ramos de pinho, tinha palavras, uns palavrões que ele lançava às crianças que se punham de cócoras à frente dele para aprender mais sobre a aparência de ladrões. Até um homem numa gaiola pode falar palavras, ou, se a sua língua for cortada, pode ouvi-las, ou se tem os ouvidos cheios de sujidade, ele tem-nas na sua mente. Nas palavras ele é livre, pelo menos até morrer, e eu não sei, nem a minha mãe sabia, se um homem tem palavras depois de morto, a não ser aquelas que tenha deixado escritas, se tiver sido instruído. Eu não vejo que a vida possa ter qualquer interesse se não se puder ser livre. Nesta vida qualquer pessoa está condenada a ter de morrer. Pode desafiar tudo excepto a morte. Se a morte provar que eu não sou livre então eu elogio o Nosso Senhor Jesus Cristo por tê-la ultrapassado, mas continuo sem saber onde o meu avô possa estar e com que dificuldade é que come o festim eterno. Ainda me questiono onde estão aqueles mortos que atraíam para eles o meu amor, como um fio dourado da minha barriga e porque estão tão silenciosos. Ainda os sinto a puxar os meus órgãos. Procuro-os debaixo da superfície das poças, nas profundezas do bosque e daria com agrado o meu corpo para eles habitarem, porque às vezes preferia estar presa à morte do que à solidão e, noutras vezes, pergunto-me se a morte em si não será a maior liberdade de todas». In Kate Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.

Cortesia Ésquilo/JDACT