sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal. Pedro Calafate. «… essa dimensão fundamental e profunda de participação. É ela que determina que o significado se tome presente no significante, que a transcendência do significado se tome, em certo sentido, presente no significante»

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Ciência e Religião. Natureza e Símbolo
«(…) Também a reflexão de Paul Ricoeur aponta nesse sentido: ao situar o esforço da pesquisa no campo da metáfora, considera-a, não como a retórica clássica, no quadro semântico da palavra, mas sim no quadro semântico do discurso, o que lhe retira um estatuto meramente ornamental ou emocional. Ela comporta uma informação nova, origina novos campos semânticos, diz qualquer coisa de novo. Assim também o símbolo, que tem em comum com a metáfora esse signifier plus, sublinhando Ricoeur que [...] para aquele que participa na significação simbólica, não existem dois significados, um literal e outro simbólico, mas um único movimento que nos transfere de um nível ao outro e que nos assimila à significação segunda graças, ou através, da signigicação literal […]. Nesses termos, conclui Ricoeur, a significação simbólica, ao invés de se configurar como uma degradação daverdade, apresenta-se como uma capacidade fundamental de dar forma à experiência humana, mediante o que considera como uma redescrição da realidade. Ora, esse movimento que nos transfere de um nível a outro arrasta consigo as marcas profundas do eufemismo. Ele transfere-nos de um significante concreto e sensível a um significado que não é passível de percepção. Afigura-se como um sistema de conhecimento indirecto, onde significado e significante tendem a aproximar-se. Todavia, tal aproximação, a fim de que a arbitrariedade se não instale, deverá exprimir uma dimensão ontológica profunda, que se traduz pelo conceito de participação. De facto, o simbolismo apenas poderá funcionar desde que haja distanciação, embora sem corte radical, como também, desde que haja plurivocidade, embora sem arbitrariedade. Apenas assim poderá transmitir a ideia da sua pertinência.
E a ideia de participação que possibilita uma verdadeira comunicação entre o sensível e o não sensível; que legitima esse caso limite do conhecimento indirecto; que nos possibilita aceder à presença do transcendente. De facto, para que o símbolo se não degrade, em alegoria, é necessário que o significante participe do significado. Assim sucede, de facto, no caso que nos interessa focar, o do simbolismo das criaturas, em que assenta o significado religioso do universo, o qual poderia ser classificado como arbitrário se lhe não assistisse essa dimensão fundamental e profunda de participação. É ela que determina que o significado se tome presente no significante, que a transcendência do significado se tome, em certo sentido, presente no significante. O mesmo se dirá, porventura com maior pertinência, do dogma da Eucaristia, responsável por uma das mais acesas polémicas do pensamento setecentista: apenas uma presença real toma possível o símbolo; sem ela estaríamos tão-só em presença de simples imagens, dotadas de poder emocional, mas incapazes de estabelecer uma verdadeira comunicação. Como escreveu Roger Mehl, a simples imagem manteria o sentido do mistério, ao passo que o símbolo faz enconlrar o mistério: … para que se possa falar de símbolo e para que o símbolo nos faça pensar não sobre o finito mas sobre o infinito,importa que o infinito se estabeleça no finito, que vença a incapacidade natural do finito para dizer algo para além de si próprio.
Então, para o cristianismo, apenas poderemos falar em símbolo na medida em que ele nos é dado por Aquele que aceita ser simbolizado, melhor dito, que aceita ser integrado no finito sem, contudo, com ele se confundir, atribuindo ao que é perecível e finito um sentido que este, por si próprio, não poderia comportar. Fazer coincidir o fenómeno com o infinito, eis a profunda missão do símbolo no seu originário significado religioso, o qual coincide, como reconheceu Gadamer, com a missão originária do símbolo em sentido lato: … a forma religiosa do símbolo corresponde exactamente a finalidade originária do symbolon: ser divisão do uno e reintegração da dualidade. Por isso, o movimento reintegrador que o símbolo constitui apenas se toma defìnível relativamente a um horizonte de valores, pela atracção do qual a nova significação emerge do significante que o transporta: é esse horizonte que guia, ao fim ao cabo, todo o fecundo esforço de interpretação, permitindo que o sentido que se quer evocar possa emergir no prolongamento e sobre o apoio de um sentido já disponível. Em todo o caso, a representação será sempre indirecta, deixa em suspenso o sentido visado, percebido in aenigmate: esse sentido é tomado presente mediante a função simbólica, embora, ao mesmo tempo, permaneça distante. Ele permanece ausente na sua própria presença». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.

Cortesia INCM/JDACT