Introdução
«(…) Naturalmente, o
facto de todas estas fontes terem
sido produzidas em contextos históricos e culturais diferenciados e
particulares obrigar-nos-á a ter em conta ou mesmo a salientar os seus
objectivos (morais, políticos, religiosos, pedagógicos, literários...), o
público visado ou o público real, as
suas características internas (género literário escolhido, influências...), o
seu êxito editorial (manuscrito ou impresso), a sua maior ou menor
receptividade, tendo em conta as contingências da sua produção e das suas intencionalidades.
Deste modo, a elaboração do método conduziu, igualmente, à delimitação do
objecto com vista a uma leitura o mais possível coerente, embora necessariamente
multifacetada, dos diferentes textos. Ao termo-nos proposto estudar o casamento
nos séculos XVI e XVII na Península Ibérica desde a perspectiva da
história da cultura, privilegiando a sua vertente da história da
espiritualidade, visávamos, precisamente, a abordagem de uma dimensão pouco
tratada na Península Ibérica e, sobretudo, em Portugal, mas de uma importância
que, esperamos poder demonstrá-lo, não só não é menor, como determina a
compreensão de muitos outros aspectos de ordem moral, social e, mesmo,
literária. Daí que não tenhamos incluído nesta fase do trabalho o estudo das
fontes mais propriamente literárias, teatro, novela, poesia... porque se
reportam a contextos, ideias, debates, realidades que é necessário situar
previamente, sob pena de se simplificar ou adulterar o seu significado. Ou de
fornecer interpretações que uma contextualização epocal pode fazer ruir...
Do mesmo modo, cremos
não ser correcto falar-se de doutrina do casamento na Península Ibérica
reportando-nos apenas a algumas obras especificamente dedicadas ao problema.
Este é visivelmente mais complexo e envolve matizes e aspectos de âmbito bem
mais amplo e com implicações a vários níveis. Esses textos, dos quais muitos se
inserem num vasto grupo de obras morais ad
status, não têm qualquer significado se deslocadas dele ou se vistas
apenas nas relações literárias entre si. O(s) modelo(s) de vida familiar e
conjugal que veiculam não pode(m), naturalmente, ser visto(s) separada ou
independentemente dos modelos de vida religiosa (tantas vezes produzidos, uns e
outros, pelos mesmos autores). Além disso, a concepção doutrinariamente
generalizada durante a Idade Média e ainda nos começos do século XVI (embora
rapidamente polémica) da preeminência da vida religiosa sobre a vida secular
laica marca, decisiva e polemicamente, a atribuição de inferioridade ao
casamento em relação não apenas à virgindade e ao celibato, como também à
viuvez. É tendo em conta este enfoque específico e básico, que muitas vezes tem
levado a generalizações e simplificações pouco correctas, que exploraremos
preferentemente a dimensão da espiritualidade do casamento, nomeadamente no que
ela significou e no que reconheciam aos casados, ou que estes esperavam e
desejavam.
Embora sem negar a
pertinência das diferenciações entre espiritualidade familiar e espiritualidade
conjugal, parece-nos importante notar que a busca de compreensão da concepção
do casamento cristão, bem como a sua definição, nos inícios da Idade Moderna
passa pela percepção da espiritualidade matrimonial que subjaz a muitas
perspectivas e muitas polémicas, sem as quais muitas obras e a própria evolução
da concepção, das concepções, do casamento e da família não teriam o
mesmo sentido. Num livro clássico, ainda que cada vez mais discutível, sobre a criança
e a vida familiar no Antigo Regime, Philippe Ariès afirmava que, durante a
Idade Média, o sacramento do matrimónio não conferiu, de facto, um carácter sagrado, espiritual, ao casamento, tendo
este permanecido, fundamentalmente, um contrato. Em grande medida porque ...ce n'était pas dans la vie laique que
l'homme pouvait se sanctifier... Na sua perspectiva, ...Il fallut attendre la fin du XVIe siècle,
le temps de la philothée de saint François de Sales ou, au XVIIe siècle,
l'exemple des messieurs de Port-Royal, […] sanctification en dehors de la
vocation religieuse, dans la pratique des devoirs
d'état.
Antes de comentar esta
passagem, de que, em parte, discordamos, colocaremos algumas questões prévias
que nem sempre têm tido tratamento sistemático, mas que, do nosso ponto de
vista, se afiguram fundamentais. Qual
a relação entre a concepção, por parte da Igreja, do sacramento do matrimónio e
o seu ideal de santidade? Qual
a importância e repercussões do reconhecimento ou atribuição de
sacramentalidade a esse contrato? Qual
a relação da posição oficial da Igreja relativamente ao sacramento do
matrimónio com a posição de alguns dos seus teólogos e canonistas? Quais as diferenças teóricas e
legislativas na posição daquela antes e depois do Concílio de Trento? Como se revelaram essas diferenças?
Quando começaram elas a ter peso na
realidade? Quando e de que
modo foram elas adoptadas e veiculadas pela literatura moral e religiosa?»
In
Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento.
Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura
Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN:
972-9350-17-5.
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