sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Espelhos. Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica. 1450-1700. Maria de Lurdes C. Fernandes. «Qual a relação da posição oficial da Igreja relativamente ao sacramento do matrimónio com a posição de alguns dos seus teólogos e canonistas? Quais as diferenças teóricas e legislativas na posição daquela antes e depois do Concílio de Trento?»

Cortesia de wikipedia

Introdução
«(…) Naturalmente, o facto de todas estas fontes terem sido produzidas em contextos históricos e culturais diferenciados e particulares obrigar-nos-á a ter em conta ou mesmo a salientar os seus objectivos (morais, políticos, religiosos, pedagógicos, literários...), o público visado ou o público real, as suas características internas (género literário escolhido, influências...), o seu êxito editorial (manuscrito ou impresso), a sua maior ou menor receptividade, tendo em conta as contingências da sua produção e das suas intencionalidades. Deste modo, a elaboração do método conduziu, igualmente, à delimitação do objecto com vista a uma leitura o mais possível coerente, embora necessariamente multifacetada, dos diferentes textos. Ao termo-nos proposto estudar o casamento nos séculos XVI e XVII na Península Ibérica desde a perspectiva da história da cultura, privilegiando a sua vertente da história da espiritualidade, visávamos, precisamente, a abordagem de uma dimensão pouco tratada na Península Ibérica e, sobretudo, em Portugal, mas de uma importância que, esperamos poder demonstrá-lo, não só não é menor, como determina a compreensão de muitos outros aspectos de ordem moral, social e, mesmo, literária. Daí que não tenhamos incluído nesta fase do trabalho o estudo das fontes mais propriamente literárias, teatro, novela, poesia... porque se reportam a contextos, ideias, debates, realidades que é necessário situar previamente, sob pena de se simplificar ou adulterar o seu significado. Ou de fornecer interpretações que uma contextualização epocal pode fazer ruir...
Do mesmo modo, cremos não ser correcto falar-se de doutrina do casamento na Península Ibérica reportando-nos apenas a algumas obras especificamente dedicadas ao problema. Este é visivelmente mais complexo e envolve matizes e aspectos de âmbito bem mais amplo e com implicações a vários níveis. Esses textos, dos quais muitos se inserem num vasto grupo de obras morais ad status, não têm qualquer significado se deslocadas dele ou se vistas apenas nas relações literárias entre si. O(s) modelo(s) de vida familiar e conjugal que veiculam não pode(m), naturalmente, ser visto(s) separada ou independentemente dos modelos de vida religiosa (tantas vezes produzidos, uns e outros, pelos mesmos autores). Além disso, a concepção doutrinariamente generalizada durante a Idade Média e ainda nos começos do século XVI (embora rapidamente polémica) da preeminência da vida religiosa sobre a vida secular laica marca, decisiva e polemicamente, a atribuição de inferioridade ao casamento em relação não apenas à virgindade e ao celibato, como também à viuvez. É tendo em conta este enfoque específico e básico, que muitas vezes tem levado a generalizações e simplificações pouco correctas, que exploraremos preferentemente a dimensão da espiritualidade do casamento, nomeadamente no que ela significou e no que reconheciam aos casados, ou que estes esperavam e desejavam.
Embora sem negar a pertinência das diferenciações entre espiritualidade familiar e espiritualidade conjugal, parece-nos importante notar que a busca de compreensão da concepção do casamento cristão, bem como a sua definição, nos inícios da Idade Moderna passa pela percepção da espiritualidade matrimonial que subjaz a muitas perspectivas e muitas polémicas, sem as quais muitas obras e a própria evolução da concepção, das concepções, do casamento e da família não teriam o mesmo sentido. Num livro clássico, ainda que cada vez mais discutível, sobre a criança e a vida familiar no Antigo Regime, Philippe Ariès afirmava que, durante a Idade Média, o sacramento do matrimónio não conferiu, de facto, um carácter sagrado, espiritual, ao casamento, tendo este permanecido, fundamentalmente, um contrato. Em grande medida porque ...ce n'était pas dans la vie laique que l'homme pouvait se sanctifier... Na sua perspectiva, ...Il fallut attendre la fin du XVIe siècle, le temps de la philothée de saint François de Sales ou, au XVIIe siècle, l'exemple des messieurs de Port-Royal, […] sanctification en dehors de la vocation religieuse, dans la pratique des devoirs
d'état.
Antes de comentar esta passagem, de que, em parte, discordamos, colocaremos algumas questões prévias que nem sempre têm tido tratamento sistemático, mas que, do nosso ponto de vista, se afiguram fundamentais. Qual a relação entre a concepção, por parte da Igreja, do sacramento do matrimónio e o seu ideal de santidade? Qual a importância e repercussões do reconhecimento ou atribuição de sacramentalidade a esse contrato? Qual a relação da posição oficial da Igreja relativamente ao sacramento do matrimónio com a posição de alguns dos seus teólogos e canonistas? Quais as diferenças teóricas e legislativas na posição daquela antes e depois do Concílio de Trento? Como se revelaram essas diferenças? Quando começaram elas a ter peso na realidade? Quando e de que modo foram elas adoptadas e veiculadas pela literatura moral e religiosa?» In Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.

Cortesia de ICP/FLFP/JDACT