quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Estelas e Terra Amarela. Victor Segalen. «Honrar os reconhecidamente Sábios; recensear os Justos; repetir a todos os rostos que aquele viveu, e foi nobre, e virtuosa a sua atitude. Isso é bom. Disso não cuido: tantas bocas sobre tal discorrem!»

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Estelas
«(…) Por deferência, são postadas de frente para o Norte, pólo do negro virtuoso, as Estelas da amizade. Orientam-se as amorosas, para que a madrugada lhes embeleze as mais suaves feições e lhes suavize as más. Voltam-se para o Oeste ensanguentado, palácio do vermelho, as guerreiras e as heróicas. Outras, Estelas da beira do caminho, acompanham o gesto indiferente da estrada. Todas se oferecem a quem passa sem reservas, aos almocreves, aos carreiros, aos eunucos aos salteadores, aos monges mendicantes, aos homens de poeira, aos mercadores. Elas erguem para esses os seus rostos iluminados de sinais; e eles, vergados ao peso da carga ou famintos de arroz e pimentão, passam contando-as entre os marcos miliários. Assim, acessíveis a todos, reservam elas o melhor para alguns. Algumas, não viradas para o Sul nem para o Norte, não para o Leste nem para o Ocidente, nem para algum dos pontos escuros, apontam o lugar por excelência, o meio. Como as lajes tombadas ou as abóbadas gravadas na face invisível, elas propõem os seus sinais à terra em que imprimem um selo. São os decretos de um outro império, e singular. Suportam-se ou recusam-se, sem comentários nem inúteis glosas, aliás sem confrontar nunca o texto verdadeiro: apenas as marcas que se lhe furtam.

Estelas viradas para o meio-dia. Sem marca de reinado
Honrar os reconhecidamente Sábios; recensear os Justos; repetir a todos os rostos que aquele viveu, e foi nobre, e virtuosa a sua atitude. Isso é bom. Disso não cuido: tantas bocas sobre tal discorrem! Tantos pincéis elegantes se esforçam por decalcar fórmulas e formas, que as lápides memoriais se emparelham como as torres de vigia ao longo da via do Império, de cinco mil em cinco mil passos.
Atento ao que não foi dito; submetido pelo que não é promulgado; prosternado diante do que não foi ainda, consagro a minha alegria, e a minha vida, e a minha piedade, a denunciar reinados sem anos, dinastias sem investiduras, nomes sem pessoas, pessoas sem nomes, tudo o que o Céu-Soberano engloba e o homem não realiza.
Não tenha isto, pois, a marca de um reinado: nem dos Hsia fundadores; nem dos Tcheou legisladores; nem dos Han, nem dos Thang, nem dos Soung, nem dos Yuan, nem dos Grandes Ming, nem dos Tshing, os Puros, que sirvo com fervor, nem do último dos  Tshing cuja glória deu nome ao período Kouang-Siu.
Mas desta era única, sem datação nem fim, de caracteres indizíveis, que todo o homem em si mesmo instaura, e que saúda, na madrugada em que se torna Sábio e Regente do trono do seu coração». In Victor Segalen, Stèles, Terre Jaune, Pequim 1912, Edições La Difference, Paris, 1989, Edições Cotovia, Lisboa, 1996, Fundação Oriente, ISBN 972-8028-72-5.


Cortesia de FOriente/JDACT