Estelas
«(…) Por deferência, são postadas de frente para o Norte, pólo do negro
virtuoso, as Estelas da amizade.
Orientam-se as amorosas, para que a madrugada lhes embeleze as mais suaves
feições e lhes suavize as más. Voltam-se para o Oeste ensanguentado, palácio do
vermelho, as guerreiras e as heróicas. Outras, Estelas da beira do caminho, acompanham o gesto indiferente da
estrada. Todas se oferecem a quem passa sem reservas, aos almocreves, aos
carreiros, aos eunucos aos salteadores, aos monges mendicantes, aos homens de
poeira, aos mercadores. Elas erguem para esses os seus rostos iluminados de
sinais; e eles, vergados ao peso da carga ou famintos de arroz e pimentão,
passam contando-as entre os marcos miliários. Assim, acessíveis a todos, reservam
elas o melhor para alguns. Algumas, não viradas para o Sul nem para o Norte, não
para o Leste nem para o Ocidente, nem para algum dos pontos escuros, apontam o
lugar por excelência, o meio. Como
as lajes tombadas ou as abóbadas gravadas na face invisível, elas propõem os seus
sinais à terra em que imprimem um selo. São os decretos de um outro império, e
singular. Suportam-se ou recusam-se, sem comentários nem inúteis glosas, aliás
sem confrontar nunca o texto verdadeiro: apenas
as marcas que se lhe furtam.
Estelas viradas para o meio-dia. Sem marca de reinado
Honrar os reconhecidamente Sábios; recensear os Justos; repetir a todos
os rostos que aquele viveu, e foi nobre, e virtuosa a sua atitude. Isso é bom.
Disso não cuido: tantas bocas sobre tal discorrem! Tantos pincéis elegantes se
esforçam por decalcar fórmulas e formas, que as lápides memoriais se emparelham
como as torres de vigia ao longo da via do Império, de cinco mil em cinco mil
passos.
Atento ao que não foi dito; submetido pelo que não é promulgado;
prosternado diante do que não foi ainda, consagro a minha alegria, e a minha
vida, e a minha piedade, a denunciar reinados sem anos, dinastias sem
investiduras, nomes sem pessoas, pessoas sem nomes, tudo o que o Céu-Soberano
engloba e o homem não realiza.
Não tenha isto, pois, a marca de um reinado: nem dos Hsia fundadores;
nem dos Tcheou legisladores; nem dos Han, nem dos Thang, nem dos Soung, nem dos
Yuan, nem dos Grandes Ming, nem dos Tshing, os Puros, que sirvo com fervor, nem
do último dos Tshing cuja glória deu
nome ao período Kouang-Siu.
Mas desta era única, sem datação nem fim, de caracteres indizíveis, que
todo o homem em si mesmo instaura, e que saúda, na madrugada em que se torna
Sábio e Regente do trono do seu coração». In Victor Segalen, Stèles, Terre Jaune, Pequim
1912, Edições La Difference, Paris, 1989, Edições Cotovia, Lisboa, 1996,
Fundação Oriente, ISBN 972-8028-72-5.