(…)
Crónica de D. Pedro I
«Como elRei mandou degollar
dous seus criados, porque roubarom huum judeu e o matarom
Este Rei Dom Pedro em quanto
viveo, husou muito de justiça sem afeiçom, teendo tal igualdade em fazer
direito, que a nenhuum perdoava os erros que fazia, por criaçom nem bem
querença que com el ouvesse; e se dizem que aquel he bem aventurado Rei, que
per si escodrinha os malles e forças que fazem os pobres, e bem he este do
conto de taaes, ca el era ledo de os ouvir, e folgava em lhes fazer direito, de
guisa que todos viviam em paz, e era ainda tam zeloso de fazer justiça,
espeçiallmente dos que travessos eram, que perante si os mandava meter a
tormento, e se confessar nom queriam, el se desvestia de seus reaaes panos, e
per sua maão açoutava os malfeitores, e pero que dello muito prasmavom seus
conselheiros e outros alguuns, anojavasse de os ouvir, e nom o podiam quitar
dello per nenhuuma guisa. Nenhuum feito crime mandava que se desembargasse salvo
perantelle, e se ouvia novas dalguum ladrom ou malfeitor, alongado muito donde
el fosse, fallava com alguum seu de que se fiava, prometendolhe merçees por lho
hir buscar, e mandavalhe que nom vehesse ante elle, ataa que todaria lho
trouvesse aa maão; e assi lhos tragiam presos do cabo do reino, e lhos
apresentavom hu quer que estava; e da mesa se levantava, se chegavom a tempo
que el comesse, por os fazer logo meter a tormento; e el meesmo poinha em elles
maão quando viia que confessar nom queriam firindoos cruellmente ataa que
confessavam. A todo o logar honde elRei hia, sempre achariees prestes com huum
açoute, o que de tal offiçio tiinha encarrego, em guisa que como a elRei
tragiam alguum malfeitor, e el dizia chamemme foaão que traga o açoute, logo elle
era prestes sem outra tardança. E pois que escrepvemos que foi justiçoso, por
fazer dereito em reger seu poboo, bem he que ouçaaes duas ou tres cousas: por
veerdes o geito que em esto tiinha. Assi aveo que pousando el nos paaços de
Bellas que el fezera, dous seus escudeiros que gram tempo avia que com el
viviam, seendo ambos parceiros ouverom comselho que fossem roubar huum Judeu
que pelos montes andava vendendo speçearia, e outras cousas, e foi assi de
feito, que forom buscar aquella çuja prea e roubaromno de todo, e o peor desto,
foi morto per elles; sua ventura que lhe foi contraira, aazou de tal guisa que
forom logo presos e tragidos a elRei ali hu pausava. ElRei como os vio tomou
gram prazer por seerem filhados, e começouhos de preguntar como fora aquello,
elles pensando que longa criaçom e serviço que lhe feito aviam, o demovesse a
ter alguum geito com elles, nom tal como tiinha com outras pessoas, começarom
de negar, dizendo que de tal cousa nom sabiam parte. El que sabia ja de que
guisa fora, disse que nom aviam por que mais negar, que ou confessassem como ho
matarom, se nom que a poder de cruees açoutes lhe faria dizer a verdade: elles
em negando, virom que elRei queria poer em obra o que lhe per pallavra dizia,
comfessarom todo assi como fora; e elRei sorrindosse disse que fezerom bem, que
tomar queriam mester de ladroões e matar homeens pelos caminhos, de se
ensinarem primeiro dos Judeus, e depois viinriam aos Christãos; e em dizendo
estas e outras palavras passeava perantelles dhuma parte aa outra, e parece que
nenbrando-lhe a criaçom que em elles fezera e como os queria mandar matar,
viinham-lhe as lagrimas aos olhos per vezes; depois tornava asperamente contra
elles reprendendoos muito do que feito aviam, e assi andou per huum grande
espaço. Os que hi estavam que aquesto viam, sospeitando mal de suas razoões,
aficavamse muito a pedir merçee por elles, dizendo que por huum Judeu astroso
nom era bem morrerem taaes homeens, e que bem era de os castigar per degredo,
ou outra alguuma pena, mas nom mostrar contra aquelles que criara pello
primeiro erro tam grande crueza. ElRei ouvindo todos respondia sempre que dos
Judeos viinriam depois aos Christaãos, en fim destas e outras razoões, mandou
que os degollassem, e foi assi feito.
A Portugal forom tragidos Alvoro
Gomçallvez e Pero Coelho, e chegarom a Samtarem omde elRei Dom Pedro era; e
elRei com prazer de sua viimda, porem mal magoado por que Diego Lopez fugira,
os sahiu fora arreçeber, e sanha cruel sem piedade lhos fez per sua maão meter
a tromento, queremdo que lhe confessassem quaaes forom na morte de Dona Enes
culpados, e que era o que seu padre trautava contreelle, quamdo amdavom desa
viindos por aazo da morte della; e nenhuum delles respomdeo a taaes preguntas
cousa que a elRei prouvesse; e elRei com queixume dizem que deu huum açoute no
rostro a Pero Coelho, e elle se soltou emtom comtra elRei em desonestas e feas
pallavras, chamamdolhe treedor, fe perjuro, algoz e carneçeiro dos homeens; e
elRei dizemdo que lhe trousessem çebolla e vinagre pera o coelho, emfadousse
delles e mandouhos matar. A maneira de sua morte, seendo dita pelo meudo, seria
mui estranha e crua de comtar, ca mandou tirar o cora çom pellos peitos a Pero
Coelho, e a Alvoro Gomçallves pellas espadoas; e quaaes palavras ouve, e aquel
que lho tirava que tal officio avia pouco em costume, seeria bem doorida cousa
douvir, emfim mandouhos queimar; e todo feito ante os paaços omde el pousava,
de guisa quc comendo oolhava quamto mandava fazer. Muito perdeo elRei de sua
boa fama por tal escambo como este, o qual foi avudo em Portugal e em Castella
por mui grande mal, dizemdo todollos boons que o ouviam, que os Reis erravom
mui muito himdo comtra suas verdades, pois que estes cavalleiros estavom sobre
seguramça acoutados em seus reinos». In Fernão Lopes, Projecto Vercial,
Universidade do Minho.
(…)
Cortesia de UMinho/JDACT