Falcões. Wiltshire, Setembro de 1535
«(…) Na casa que tem na cidade, em Austin Friars, o seu retrato sobressai
na parede; está envolto em lã e peles, a mão enclavinhada em volta de um
documento como se o estivesse a estrangular. Hans empurrara uma mesa para trás
para o encurralar e dissera Thomas, não podes rir; e tinham prosseguido nessa
base, Hans cantarolando enquanto trabalhava e ele de olhar ferozmente fixo na
média distância. Quando viu o retrato acabado, exclamou: Deus me valha, pareço
um assassino; e o seu filho Gregory disse não sabíeis? Estão a ser feitas cópias para os amigos e para
os seus admiradores entre os evangélicos da Alemanha. Não quer separar-se do
original, agora não, que já me habituei a ele, costuma dizer, e assim, quando entra
em sua casa, encontra versões de si próprio em vários estádios de evolução: um
esboço provisório, parcialmente passado a tinta. Com Cromwell, por onde começar? Há quem comece
pelos seus pequenos olhos argutos, há quem comece pelo chapéu. Há quem eluda a
questão e pinte o seu selo e tesoura, outros escolhem o anel de turquesa,
oferecido pelo cardeal. Por onde quer que comecem, o impacto final é o mesmo:
se tivesse qualquer agravo contra nós, não gostaríamos de o encontrar na
escuridão da Lua. Walter, o pai dele, costumava dizer: O meu rapaz Thomas,
ele é assim, olhai mal para ele e vaza-vos o olho. Passem-lhe uma rasteira e
corta-vos a perna. Mas se não se atravessarem no seu caminho é um verdadeiro cavalheiro.
E paga um copo a qualquer pessoa.
Hans retratou o rei, benévolo nas suas sedas de verão, sentado com os
seus anfitriões depois de cear, as portadas abertas ao trinado tardio dos
pássaros, as primeiras velas a entrarem com as frutas cristalizadas. Em cada
etapa da sua progressão, Henry detém-se na casa principal, com a rainha Anne; a
sua comitiva pernoita com os fidalgos locais. É costume os anfitriões do rei,
pelo menos quando o rei está de visita, receberem esses anfitriões periféricos
em jeito de agradecimento, o que sobrecarrega os arranjos domésticos. Ele contou
os carros de provisões que entraram; viu as cozinhas postas em alvoroço e ele
próprio foi lá abaixo àquela hora verde-cinza antes do amanhecer, quando os
fornos de tijolo são esfregados para estarem a postos para a primeira fornada
de pães, enquanto as carcaças dos animais são postas no espeto, as panelas
colocadas nos tripés, as aves depenadas e desmanchadas. O seu tio foi
cozinheiro de um arcebispo, e, em criança, ele frequentava as cozinhas do palácio
de Lambeth; conhece a matéria de trás para a frente e nada do que diz respeito
ao conforto do rei deve ser deixado ao acaso.
São dias perfeitos. A luz clara e desanuviada destaca cada um dos bagos
que cintilam nas sebes. Cada folha de árvore, com o sol por trás, pende como um
fruto doirado. Viajando para oeste no pino do verão embrenhámo-nos em cavalgadas
silvestres e subimos à crista das colinas, emergindo naquelas terras onde, de
condado para condado, se pode sentir a presença ondulante do oceano. Nesta
parte de Inglaterra, os nossos antepassados, os gigantes, deixaram as suas
fortificações, os seus túmulos e os seus monumentos de pedra. Todos nós, homens
e mulheres de Inglaterra, temos ainda nas nossas veias algumas gotas de sangue
de gigante. Nesses tempos antigos, numa terra não profanada pelas ovelhas ou
pelo arado, caçavam o javali e o alce. A floresta estendia-se à frente deles
por muitos dias. Às vezes, são desenterradas armas antigas: machados que
empunhados com as duas mãos podiam cortar ao meio cavalo e cavaleiro. Pense-se
nos grandes membros desses homens mortos, que estremecem debaixo de terra. A
guerra era a sua natureza e a guerra está sempre desejosa de voltar outra vez.
Não é só no passado que se pensa enquanto se cavalga através desses campos. É
no que está latente na terra, o que está a nascer; são os dias que virão, as
guerras por travar, os ferimentos e mortes que, como sementes, o solo de
Inglaterra mantém quentes. Pensaríamos, ao ver Henry rir, ao ver Henry rezar,
ao vê-lo conduzir os seus homens pelos trilhos da floresta, que está tão seguro
no trono em que se senta como no cavalo que monta. À noite, jaz acordado;
observa as traves do tecto trabalhado; conta os seus dias. Diz Cromwell, Cromwell, que hei-de fazer?"
Cromwell, salva-me do Imperador. Cromwell, salva-me do Papa. Chama depois o seu
arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer, e quer saber: A minha alma está condenada?» In Hilary Mantel, Bring Up the
Bodies, 2012, O Livro Negro, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN
978-972-26-3594-3.
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