Uma Vara que são Duas
«(…) Sublinhemos, por agora, a
forma subtil como as pistas são criadas e simultaneamente dissimuladas. As duas
varas parecem uma única porque:
- se situam no prolongamento uma da outra;
- o espaço entre as duas mãos da figura tem uma cor igual à das varas;
- a orla da veste castanha que a figura enverga é visível entre as suas mãos, no prolongamento exacto das varas, criando a ilusão de continuidade.
Trata-se porém de duas varas
distintas porque:
- um exame atento mostra que não há vara entre as duas mãos;
- uma das mãos está colocada de tal forma que cortaria o hipotético prolongamento da sua vara, sem margem para dúvidas.
Como se isto não chegasse para pôr
a claro o método usado pelo pintor, a importância da zona que fica entre as
mãos da figura é indicada pelo exame infra-vermelho do esboço preparatório
subjacente. Em todo o painel da Relíquia, a única
alteração visível do desenho preliminar das figuras consiste precisamente na
posição das mãos que seguram as duas varas, e apenas o espaço que as separa
aparece modificado: na versão preliminar, as duas mãos cruzavam-se ocultando-o,
e na versão definitiva as mãos separam-se, patenteando subtilmente a separação
das varas. Mais uma vez, a revelação de todo um labor de pesquisa prévia
finalmente traduzido na formulação final que podemos contemplar na pintura. As
leituras literais das duas varas limitam-se a registá-las sem procurar um
significado especial para a sua estranha colocação, no enfiamento exacto uma da
outra. Tratar-se-ia, ao que parece, de saber para que servem, sem se
compreender, mais uma vez, que servem para fazer pensar. E as hipóteses não
variam muito: ou bordões de peregrino ou muletas residuais de um milagre de
S. Vicente (apesar da falta de apoios para as axilas). É previsível que,
mais tarde ou mais cedo, surja entre os historiadores da arte que acham as polémicas
indesejáveis, a tese das duas canas de
pesca para fazer concorrência aos pescadores do camaroeiro da rainha, mas é menos provável que finalmente se
aceite o trabalho esforçado do pintor para conseguir fazer pensar...
E a dupla vara completa bem o
catálogo de anomalias que confere ao políptico o seu estatuto único e quase
mítico. De algum modo, representa o estádio final da caminhada que tem início
no mais visível e inquietante dos
mistérios, o espaço escuro do painel dos Frades, por onde se entra. O
génio de um inventor de charadas manifesta-se na habilidade em sobrepor
sentidos com economia de meios, e a viagem de quem entra e consegue sair pode
ser resumida em breves palavras: é-se absorvido pelo buraco negro de um
extremo, e sai-se no extremo oposto, como um pobre caminhante exausto, mas
armado com o estoicismo dos santos, o ânimo dos profetas, e a solução do enigma
nas mãos: o que parece único é dual.
Duas Caras que são Uma
As anomalias mais gritantes estão quase esgotadas, e no topo
do painel das varas que parecem uma mas são duas, dois figurantes gémeos, um
esvaziado e o outro cheio, mostram a diferença entre o ponto de vista ingénuo e
vazio, coberto pelo rendilhado que lhe escapa, e o que absorveu as soluções.
Para o primeiro, tratar-se-á simplesmente de dois clérigos muito parecidos (talvez irmãos); para o segundo,
porém, o pormenor que interessa é a gigantesca
gola vermelha onde nada o pescoço da figura magra: por que razão, em
todo o friso de figurantes do políptico, apenas esta figura esvaziada usará uma
gola que se distingue de todas as outras pela sua cor berrante e pelo seu tamanho desmesurado? Um
caso literal de tuberculose galopante, sem tempo para mudar de indumentária, já
que a magreza normal costuma ser acompanhada de vestuário à sua medida? Ou talvez os dois irmãos tivessem
trocado as suas indumentárias...» In
António Salvador Marques, Painéis de São
Vicente de Fora.
Cortesia de Painéis/JDACT