sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Sátira na Literatura Medieval Portuguesa. Séculos XIII e XIV. Mário Martins. «Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão. O rei vivia em permanentes dificuldades económicas e quem mandava era o dinheiro: ‘Nummus honoratur, sine nummis nullus amatur’»

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Afonso X e os Soldados
«(…) Neste ciclo da guerra andaluza, entram ainda outros poetas, por exemplo Gil Pérez Conde: Aos cavaleiros e à tropa dos concelhos, ordenou o rei que não comessem galinha, durante a campanha, mas, sim, vacas e carneiros, porcos frescos, cabritos e gansos. Com efeito diziam os adivinhos que, se comessem galinha, seria perdimento da terra. Lembra-nos isto a frase dum poltrão, em Tirso Molina, na sua comédia Dona Beatriz da Silva: soy una galina, isto é, sou um cobarde. E por cada um ser aquilo que come, proibira el-rei que os soldados comessem galinha! Gil Pérez ajunta, ironicamente, que muitos a comeram. Por seu lado, Pero Gómez Barroso volta-se também contra um rico-homem que faltou na guerra e só veio na paz. E questiona com o rei, por não lhe ter dado ocasião de o servir! Fica-nos a impressão de que poetas e fidalgos pouco temiam Afonso X, o Sábio. Este e Garcia Pérez disputam, entre si, acerca duma peliça de cor, já um pouco velha. Que a atirasse à estrumeira, aconselha Garcia Pérez. E o rei não se zanga. Responde até com mesura.
As cantigas de escárnio e maldizer também tinham o seu quê de literatura panfletária, aqui e além. Afonso Fernández Cubel queixa-se do rei e da sua mão fechada. Não lhe pagava os serviços nem o recompensava dos prejuízos:

el do seu aver non me quer dar
nen er quer que eu viva no alheo;
e eu non ei erdade de meu padre.

Era, pois, um cavaleiro pobre. E ainda pior, o rei prejudicara-o nos haveres que herdara da mãe. Passava fome e em mau dia nascera. Nem mercê, nem soldada! Não sabemos de que rei se trata aqui. Contudo, Gil Pérez Conde, cavaleiro e poeta, esse queixava-se claramente do rei Afonso X. Não pagavam depressa aos que entravam na campanha da Andaluzia. Que lhe dessem um fiador, nem que fosse judeu. E noutra cantiga, lembra como brilhara na guerra mas que, na paz, a sua fortuna se pusera a andar a pé de boi. Na terceira, reclama ao rei os vossos meus maravedis, a vossa mia soldada, senhor Rei! Expressão maliciosa e bem achada: vossa, porque a tendes na mão; minha, porque me pertence. Na quarta cantiga, em forma de alegoria, conta-nos que andara em busca do Amor, primeiro no paço do rei e depois nas casas dos privados. Ninguém sabia onde ele estava. Partira e não voltara. Nas tendas dos infanções e nas dos que os serviam, todos diziam: Non sei! Só o encontrou entre os freires do Templo.
Era português este Gil Pérez Conde, e exilara-se para Castela após a subida ao trono do conde de Bolonha. Em má hora se exilara: non fui vosco en ora bõa! Tornara-se vassalo de Afonso X, servira-o em várias cidades e sempre lhe minguara a generosidade real. Podemos resumir esta polémica num provérbio: Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão. O rei vivia, de facto, em permanentes dificuldades económicas e quem mandava no mundo era o dinheiro: Nummus honoratur, sine nummis nullus amatur.

Sátiras contra os Favoritos e Magnates
Favoritos do rei, ricos-homens e outros magnates levavam também a sua conta por tabela. Martin Moxa, numa tenção, pergunta a um cortesão-poeta se os privados duram muito na privança. É que só tomam para si. Quem não lhes dá, escusa de esperar favor do rei. O outro observa que não sabe novelar e só diz: estão cada vez mais poderosos, as suas rendas aumentam e o povo empobrece. Empobrece e emigra: e, con proveza, da terra sair. Parecem os tempos de hoje. Martin Moxa zanga-se ironicamente. Morais na corte e nada sabeis! Quem lá vai, algo deve levar. Caso contrário, passa por tolo. Que ele dê, porque os privados, sem isso, nada fazem». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT