Não Penses
Não penses.
Que raio de mania essa de estares sempre a querer pensar. Pensar é trocar uma
flor por um silogismo, um vivo por um morto. Pensar é não ver. Olha apenas, vê.
Está um dia enorme de sol. Talvez que de noite, acabou-se, como diz o filósofo
da ave de Minerva. Mas não agora. Há alegria bastante para se não pensar, que é
coisa sempre triste. Olha, escuta.
Nas passagens
de nível, havia um aviso de pare, escute,
olhe com
vistas ao atropelo dos comboios. É o aviso que devia haver nestes dias
magníficos de sol. Olha a luz. Escuta a alegria dos pássaros. Não
penses, que é sacrilégio.
«Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.
Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.
Uma Significação para a Vida
Como é que o
homem vai viver sem uma significação
para a vida? Donde essa
significação? Os sucedâneos dos deuses atropelam-se tumultuosos, mas
duram menos que os deuses, duram menos que um homem. Imaginei um dia que o
homem viria a aceitar a sua condição em plenitude. Só não
imagino esse homem. Porque imaginando-o como me é possível, penso que admitirá
uma transcendência inominável, uma dimensão que supere o imediato da vida. Só
que o pensá-lo não me afecta o sentir. Tenho o enigma mas não a chave que o
desvende. Sei a interrogação, mas não posso convertê-la na pergunta a que se dá
uma resposta. Da integração do homem no mistério do universo o que me fica é a
vertigem. Mas aguento-me aí sem me retirar do abismo nem cair nele. O curioso é que são os racionalistas quem menos se perturba com a sem-razão
de tudo isto. Porque eles é que deviam saber, mais do que os outros, o porquê e o para quê. Não
querem. O mundo existe-lhes assim mesmo, sem significação. Para mim me existe
também. Mas isso aturde-me. A velhice que se anuncia, anuncia-me a aceitação e
a serenidade. Mas não me anuncia a liquidação do problema. Respiro mais calmo diante do
irritante mistério. Mas estar calmo não é anular o que me intriga, ou o
seu terror: é só anular-lhe o efeito
sobre nós. Os imbecis ou os inocentes é que os ignoram. A expressão
final do homem de hoje é o heroísmo. Porque tudo tende a esmagá-lo de todo o
lado. Mas ser herói é ser consciente. E aguentar, com um mínimo de
pulsações por minuto. Referi-me um dia a um indivíduo condenado à guilhotina e a quem um amigo dizia: fatiga o teu medo. Não fatiguei ainda a minha
inquietação. Mas fatigá-la é só o que tenho para a anular.
Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.
Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer».
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.
Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer».
A Verdade é um Modo de Estarmos a Bem Connosco
Cada época,
como cada idade da vida, tem o seu secreto e indizível e injustificável sentido
de equilíbrio. Por ele sabemos o que está certo e errado, sensato e ridículo. E
isto não é só visível no que é produto da emotividade. É visível mesmo na
manifestação mais neutral como uma notícia ou um anúncio de jornal. Donde nasce esse equilíbrio? Que é que o constitui? O destrói?
Porque é que se não rebentava a rir com os anúncios de há cento e tal anos? (Rebentámos
nós, aqui há uns meses, em casa dos Paixões, ao ler um jornal de 186...). Mas a
razão deve ser a mesma por que se não rebentou a rir com a moda que há anos
usámos, os livros ridículos que nos entusiasmaram, as anedotas com que rimos e
de que devíamos apenas rir. O homem é, no corpo como no espírito, um equilíbrio
de tensões. Só que as do espírito, mais do que as do corpo, se reorganizam com
mais frequência. Equilibrado o espírito, mete-se-lhe uma ideia nova. Se não é
expulsa, há nela a verdade. Porque a verdade é isso: a inclusão de seja o que
for no nosso mecanismo sem que lhe rebente as estruturas. Ou: a coerência de seja
o que for com o nosso equilíbrio espiritual. A verdade é um modo de estarmos a
bem connosco. Mas é um mistério saber o que nos põe a bem ou a mal. Os anúncios
de há cem anos eram ridículos porque sim. Nos meus escritos de há anos, mesmo
nos ensaios, aquilo de que me separo não são muitas vezes as ideias, a
argumentação, mas um certo modo de se olhar para os argumentos, os problemas,
um certo nível humano de encarar as coisas. Leio um ensaio de há vinte anos e
sinto que eu tinha menos vinte anos. Há um nível etário para a mesma verdade
nos existir. A verdade de que falei há vinte anos é-me exactamente a de hoje; e
todavia há um desfasamento no modo como corri para ela e me entusiasmei com ela
e me comovi com ela. Tudo agora me acontece ainda mas num registo diferente. Não é em si que as verdades envelhecem:
é com as rugas que temos no rosto e na
alma.
In Vergílio Ferreira, ‘Conta-Corrente 2’
In Vergílio Ferreira, ‘Conta-Corrente 2’
JDACT