Eu quisera lavar o pensamento
«Sou feita de temor e ansiedade
em tudo vejo aquilo que não presta
uma saudade atrás doutra saudade,
porque a saudade é tudo o que me resta.
E quando me convenço que estou morta,
ela me faz viver mais outro dia,
corre no sangue ainda gota a gota
para tornar maior esta agonia...
Como a água do mar leva as areias
eu quisera lavar o pensamento,
escorrer de mim o sangue destas veias
e vazia partir atrás do vento...
Em vez de chorar eu canto
«Esta voz amargurada,
nascida dentro de mim,
embora não seja nada,
é tristeza repassada
duma amargura ruim...
Mata o desprezo qu’a vida
nos faz sentir por alguém,
torna a saudade esquecida,
dando à alma já perdida,
a crença que lhe faz bem...
E quando a alma pergunta
se o meu cantar é condão,
eu digo qu’a gente canta
porque nos saem p’la garganta
as mágoas do coração...
Por isso é triste o meu fado,
por isso lhe quero tanto...
E porque sou desgraçado,
ao sentir-me amargurado,
em vez de chorar... eu canto...
Poemas de Maria Manuel Cid,
Chamusca, in ‘Poemas’
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