domingo, 12 de janeiro de 2014

Inquisição de Évora. Dos Primórdios a 1668. António Borges Coelho. «Quatro palmos de casa cabe a cada um. Aos mortos são concedidos sete pés de sepultura e nem tantos de casa cabem a cada um destes desgraçados vivos. Esta é a forma dos cárceres de Coimbra e Évora»

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A instituição. Casas de Despacho e de Secreto
«(…) O oratório completava este núcleo de dependências. Tinha janela para a casa do Despacho interior. Os oficiais, sem abandonarem o ofício, podiam acompanhar a missa diária. No altar estava posto o crucifixo que abria a procissão dos autos-da-fé.

Cárceres e quotidiano
Deixemos agora estas dependências onde roçagaram humilhados vencidos ou vencedores, muitos joelhos humanos; onde muitas lágrimas correram; onde famílias inteiras se destruíram, acusando-se apertadas pela morte. Entremos nos curros humanos, distribuídos pelo andar térreo e pelo primeiro piso. O alcaide com dois guardas leva o preso para os cárceres e ali o mete em um, e o deixa sem mais alívio que ver-se fechado com duas portas, metido em uma casa de quinze palmos de comprido, e doze de largo, escura e que tem por claridade uma fresta levantada do chão dez palmos pouco mais ou menos. E terá a fresta de largura uma mão travessa e de comprimento três palmos. E assim dá tão pouca luz que não chega ao chão. E para verem os presos alguma cousa hão-de estar em pé porque então lhes dá a luz nos peitos, postos na parede oposta à luz da fresta. E quando estão assentados nada vêem. E assim comem às escuras. E todo o dia estão desejando a noite para lhes darem luz: esta é uma tigelinha de barro vidrado com um bico como candeia e para se alumiar lhe dão azeite por conta de sua limitada ração […] E dela lhe descontam roupa lavada, carvão para o comer e mais miudezas da cozinha.
Nestes cárceres acotovelavam-se quatro a cinco pessoas, às vezes mais. Recebiam um cântaro de água para oito dias e outro para a urina, com um serviço para as necessidades, que aos oito dias se despejavam. No verão são tantos os bichos que andam os cárceres cheios e os fedores são excessivos. Maria Mendes, de Portalegre, com mais de 80 anos, mulher de trapeiro, morreu nos cárceres a 27 de Julho de 1632, de morte natural provocada pela velhice, câmaras e piolhos. Francisco Dias Calado, barbeiro de Beja, reconciliado em conversa com o padre franciscano frei António de S. Nicolau: - Se eram claros os cárceres do Santo Ofício (maldito), perguntara o frade. - Que eram muito pequenos e escuros e não podiam andar neles senão com o corpo dobrado sem ter onde se assentar senão na cama ou no chão. E se cozinhavam o comer, quebravam os olhos com o fumo. Que ele saíra meio cego por esse respeito. E se se podia dizer que haverá neste mundo inferno o eram os ditos cárceres. (A denúncia da conversa foi feita pelo frade a 1 de Fevereiro de 1627).
Um estrado toma meia casa onde põem as esteiras das camas e os colchões que apodrecem com a humidade. Se forem cinco os presos, só cabem de costas no estrado e ombro com ombro; por isso alguns preferem dormir nos ladrilhos fora do estrado. Quatro palmos de casa cabe a cada um. Aos mortos são concedidos sete pés de sepultura e nem tantos de casa cabem a cada um destes desgraçados vivos. Esta é a forma dos cárceres de Coimbra e Évora. As Inquisições (malditas) terão cárceres secretos e seguros, bem fechados e dispostos de maneira que haja neles corredores separados, uns que sirvam para homens, e outros para mulheres, e se atalhe a comunicação entre os presos, para maior observância do segredo, pelo grande prejuízo que do contrário se seguiria para o Santo Ofício (maldito). O Regimento de 1613 impõe que nenhuma mulher moça se porá só no cárcere em casa apartada, e quando parecer necessário, e pera sua salvação, afastar-se da companhia das outras, parecendo aos inquisidores que convém assim [...] lhe darão uma mulher de bem, e de confiança com que esteja em sua companhia, e olhe por ela, e venha com ela quando lhe fizerem sessão e audiências na Mesa, e torne com ela, de maneira que se conserve a honestidade de sua pessoa. Beatriz Mendes, de Serpa, mulher de ourives, 40 anos, a caminho da fogueira no dia 27 de Agosto de 1600 importuna o jesuíta Tristão Ferreira que a acompanhava: por descargo de sua consciência quisesse pagar de algum fato que lá lhe ficava no cárcere a uma moça, natural daqui de Évora, chamada Luísa de Castro, o serviço que por alguns meses lhe fizera vivendo ambas juntas no mesmo cárcere.
Em 1630 o padre jesuíta Gaspar de Miranda, residente no Colégio e Universidade de Évora, expressava ao recém-empossado inquisidor-geral Francisco Castro algumas das queixas que lhe chegavam dos homens da nação daquele distrito. Sobre os cárceres escrevia: É cruel aperto estarem alguns juntos em uma casinha, com todo seu serviço necessário, sem sol, nem luz, nem ar, com mau cheiro humidade e corrupção de tudo, perigo de peste e doença. E mais adiante: Por isto saem muitos do cárcere surdos, ou com dores de dentes, ou tolheidos de alguma parte, ou com outra alguma doença grave […] e alguns morrem mais cedo, principalmente os velhos, ou melancólicos, ou desanimados. Os cristãos-novos de Portugal, nos seus 31 Gravames, apresentados à Sagrada Congregação do Santo Ofício (maldito), dão notícia de outro vexame. Não deixam de meter, em companhia do mesmo preso, pessoa instruída, que fingindo-se preso, e vexado no mesmo modo, o induz a se confiar dela, do qual depois como testemunha depõem, e ajuntam outros que fazem estar ouvindo os discursos sobreditos, e igualmente se examinam». In António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume 1, Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da Leitura, 1987.

Cortesia Caminho/JDACT