«(…) Estes factos, que
no surrealismo são formas de desvelar o maravilhoso que subsiste no real, são
condizentes com a ideia de sincronicidade, termo criado por Jung (1951/2007) para designar a ocorrência de
eventos que se relacionam entre si de forma causal, sem o princípio da
causalidade, porém, apresentando equivalência de significados. Inexplicável sob
o ponto de vista lógico, a sincronicidade não depende da vontade consciente do
indivíduo para ocorrer, nem pode ser provocada por uma acção deliberada. O que
é preciso sim é uma sensibilidade, ou disposição interior, que nos permita
percebê-la como um fenómeno de natureza inusitada e surpreendente, algo não muito
diferente do maravilhamento provocado pelas petrificantes
coincidências constatadas em Nadja.
Nesse sentido, a deambulação pelas ruas, o espaço propício para as experiências
surrealistas, seria uma forma de favorecer o acaso e o imprevisível, e,
portanto, uma forma de se manter receptivo aos eventos sincronísticos. Além das
coincidências e dos acasos objectivos, que ocorreram praticamente ao longo de
todo o livro, há algumas passagens antecipando que algo maior estava a caminho
de acontecer na vida de André Breton, ou seja, no campo da alma a terra
já estava sendo preparada para receber a semente.
A atmosfera favorável
para o encontro com o arquétipo da anima está indicada na passagem em que o
autor discorre sobre o teatro, não por acaso o lugar privilegiado para dar
corpo às fantasias e despertar na plateia sentimentos e reacções que de outra forma
talvez não se manifestariam. Assim, ao discorrer sobre o Teatro Moderno,
descrevendo as suas impressões sobre uma das suas salas, o autor evoca algumas
lembranças que despertaram-lhe o desejo apaixonado de encontrar aquela que pode
ser descrita como a Mulher da Floresta,
o ser encantado comumente representado em lendas e contos de fada como uma
pessoa bela e misteriosa, forma como também costuma aparecer nas fantasias
masculinas. Sempre desejei
incrivelmente encontrar à noite, num bosque, uma mulher bela e nua, ou antes,
como tal desejo uma vez expresso perde seu significado, lamento incrivelmente
não a haver encontrado. Não se trata, evidentemente, de uma pessoa
qualquer, pois uma mulher que se apresente em tais condições só pode ser um
espírito da natureza, uma entidade fantástica oriunda de outros mundos.
Como é alguém que se
encontra no bosque, esse outro mundo é o inconsciente, pois ele também é
representado em forma de bosques e florestas. O facto de ser à noite reforça a
ideia de algo vindo do desconhecido. Para Breton, um encontro como este não
seria delírio e poderia de facto acontecer. A
mulher almejada por ele não estaria nos lugares comuns, e teria algo que a diferencia
de todas as demais. Psicologicamente esta mulher, perigosamente sedutora, foi a
projecção de alguma fantasia capaz de despertar os seus mais profundos desejos.
Neste caso a projecção, uma das formas pelas quais a anima se manifesta,
ocorreu numa figura da imaginação. Assim, a imagem de uma mulher nua no meio do
bosque, despida de pudores e moral civilizadora, aponta para os aspectos
instintivos da feminilidade, ou seja, à forma mais primitiva da anima, pela
qual o autor já vinha sendo inconscientemente atraído.
Logo adiante Breton fala
de uma peça que ele assistiu inúmeras vezes neste teatro, sentindo uma
admiração especial pela atriz Blanche Derval, que na peça Les Détraquées representava
uma personagem esculturalmente bela e perversa (anos mais tarde ele
acrescentou em nota o seu arrependimento por não ter levado adiante a sua atracção passional pela actriz,
que nunca mais vira). Este facto, que no livro está associado a uma
coincidência envolvendo um antigo professor, que na peça auxiliou o autor a
tecer o perfil psicológico das personagens, pode ser traduzido como uma
disposição interna em se envolver afectivamente com alguém, neste caso uma actriz
cujo papel ambivalente na peça despertou-lhe, por razões desconhecidas, uma
atracção especial. Estes acontecimentos correspondem à primeira parte do livro,
uma espécie de prólogo que apresenta em suas páginas iniciais um panorama do surrealismo
até aquele momento, acrescidas de algumas reflexões e comentários sobre temas
pertinentes ao movimento. A segunda parte, escrita em forma de diário, trata
dos encontros com Nadja, que ocorreram ao longo de 10 dias, durante o mês de Outubro
de 1926. A parte final, escrita
quatro meses depois, traz novas reflexões do autor sobre esta sua experiência,
que retrata um dos momentos mais inspirados e sublimes do surrealismo. Antes
dos relatos, uma observação interessante que aproxima as experiências de Jung
e André Breton a respeito do inconsciente. Quando esteve no Solar
d’Ango para escrever Nadja, André Breton viu um
pássaro morto cair no chão. No livro, é justamente neste momento que ele
anuncia a entrada em cena de Nadja, antecipando, de forma
simbólica, o trágico destino da personagem». In Fabio Massao Yabushita, Brasil,
Wikipédia, 2012.
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