O Guardador de Rebanhos
(…)
«Damo-nos tão bem um com o outro
na companhia de tudo
que nunca pensamos um no outro,
mas vivemos juntos e dois
com um acordo íntimo
como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
no degrau da porta de casa,
graves como convém a um deus e a um poeta,
e como se cada pedra
fosse todo um universo
e fosse por isso um grande perigo para ela
deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
e ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
e tem pena de ouvir falar das guerras,
e dos comércios, e dos navios
que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
que uma flor tem ao florescer
e que anda com a luz do Sol
a variar os montes e os vales
e a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
e deito-o despindo-o lentamente
e como seguindo um ritual muito limpo
e todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
e às vezes acorda de noite
e brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
põe uns em cima dos outros
e bate as palmas sozinho
sorrindo para o meu sono.
[…]
Parte do poema de Alberto Caeiro, in ‘O Guardador de Rebanhos, Poesia’
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