Afonso X e os Soldados
«(…) Neste ciclo da
guerra andaluza, entram ainda outros poetas, por exemplo Gil Pérez Conde: Aos
cavaleiros e à tropa dos concelhos, ordenou o rei que não comessem galinha,
durante a campanha, mas, sim, vacas e carneiros, porcos frescos, cabritos e
gansos. Com efeito diziam os adivinhos que, se comessem galinha, seria perdimento da terra. Lembra-nos
isto a frase dum poltrão, em Tirso Molina, na sua comédia Dona Beatriz da Silva: soy
una galina, isto é, sou um cobarde. E por cada um ser aquilo que
come, proibira el-rei que os soldados comessem galinha! Gil Pérez ajunta,
ironicamente, que muitos a comeram. Por seu lado, Pero Gómez Barroso volta-se
também contra um rico-homem que faltou na guerra e só veio na paz. E questiona
com o rei, por não lhe ter dado ocasião de o servir! Fica-nos a impressão de
que poetas e fidalgos pouco temiam Afonso X, o Sábio. Este e Garcia Pérez disputam, entre si, acerca duma peliça
de cor, já um pouco velha. Que a atirasse à estrumeira, aconselha Garcia Pérez.
E o rei não se zanga. Responde até com mesura.
As cantigas de escárnio
e maldizer também tinham o seu quê de literatura panfletária, aqui e além.
Afonso Fernández Cubel queixa-se do rei e da sua mão fechada. Não lhe pagava os
serviços nem o recompensava dos prejuízos:
el do seu aver non me
quer dar
nen er quer que eu viva
no alheo;
e eu non ei erdade de
meu padre.
Era, pois, um cavaleiro
pobre. E ainda pior, o rei prejudicara-o nos haveres que herdara da mãe.
Passava fome e em mau dia nascera. Nem mercê, nem soldada! Não sabemos de que
rei se trata aqui. Contudo, Gil Pérez Conde, cavaleiro e poeta, esse
queixava-se claramente do rei Afonso X. Não pagavam depressa aos que entravam
na campanha da Andaluzia. Que lhe dessem um fiador, nem que fosse judeu. E
noutra cantiga, lembra como brilhara na guerra mas que, na paz, a sua fortuna
se pusera a andar a pé de boi.
Na terceira, reclama ao rei os vossos
meus maravedis, a vossa mia
soldada, senhor Rei! Expressão maliciosa e bem achada: vossa, porque a
tendes na mão; minha, porque me pertence. Na quarta cantiga, em forma de alegoria,
conta-nos que andara em busca do Amor, primeiro no paço do rei e depois nas casas
dos privados. Ninguém sabia onde ele estava. Partira e não voltara. Nas tendas
dos infanções e nas dos que os serviam, todos diziam: Non sei! Só o encontrou entre os freires do Templo.
Era português este Gil
Pérez Conde, e exilara-se para Castela após a subida ao trono do conde de
Bolonha. Em má hora se exilara: non
fui vosco en ora bõa! Tornara-se vassalo de Afonso X, servira-o em
várias cidades e sempre lhe minguara a generosidade real. Podemos resumir esta
polémica num provérbio: Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem
razão. O rei vivia, de facto, em permanentes dificuldades económicas e quem
mandava no mundo era o dinheiro: Nummus
honoratur, sine nummis nullus amatur.
Sátiras contra os Favoritos e Magnates
Favoritos do rei, ricos-homens e outros magnates levavam também a sua
conta por tabela. Martin Moxa, numa tenção, pergunta a um cortesão-poeta se os privados
duram muito na privança. É que só tomam para si. Quem não lhes dá, escusa de
esperar favor do rei. O outro observa que não sabe novelar e só diz: estão cada vez mais poderosos, as
suas rendas aumentam e o povo empobrece. Empobrece e emigra: e, con proveza, da terra sair.
Parecem os tempos de hoje. Martin Moxa zanga-se ironicamente. Morais na corte e
nada sabeis! Quem lá vai, algo deve levar. Caso contrário, passa por tolo. Que
ele dê, porque os privados, sem isso, nada fazem». In Mário Martins, A Sátira na
Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série
Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual
Camões, 1986.
Cortesia de Instituto
Camões/JDACT