quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Pintura. Painel de São Vicente de Fora. Nuno Gonçalves. Painel da Relíquia. 1470 e 1480. «Em todo o painel da Relíquia, a única alteração visível do desenho preliminar das figuras consiste precisamente na posição das mãos que seguram as duas varas, e apenas o espaço que as separa aparece modificado»


Cortesia de wikipedia

Uma Vara que são Duas
«(…) Sublinhemos, por agora, a forma subtil como as pistas são criadas e simultaneamente dissimuladas. As duas varas parecem uma única porque:
  • se situam no prolongamento uma da outra; 
  • o espaço entre as duas mãos da figura tem uma cor igual à das varas; 
  • a orla da veste castanha que a figura enverga é visível entre as suas mãos, no prolongamento exacto das varas, criando a ilusão de continuidade.
Trata-se porém de duas varas distintas porque:
  • um exame atento mostra que não há vara entre as duas mãos; 
  • uma das mãos está colocada de tal forma que cortaria o hipotético prolongamento da sua vara, sem margem para dúvidas.
Como se isto não chegasse para pôr a claro o método usado pelo pintor, a importância da zona que fica entre as mãos da figura é indicada pelo exame infra-vermelho do esboço preparatório subjacente. Em todo o painel da Relíquia, a única alteração visível do desenho preliminar das figuras consiste precisamente na posição das mãos que seguram as duas varas, e apenas o espaço que as separa aparece modificado: na versão preliminar, as duas mãos cruzavam-se ocultando-o, e na versão definitiva as mãos separam-se, patenteando subtilmente a separação das varas. Mais uma vez, a revelação de todo um labor de pesquisa prévia finalmente traduzido na formulação final que podemos contemplar na pintura. As leituras literais das duas varas limitam-se a registá-las sem procurar um significado especial para a sua estranha colocação, no enfiamento exacto uma da outra. Tratar-se-ia, ao que parece, de saber para que servem, sem se compreender, mais uma vez, que servem para fazer pensar. E as hipóteses não variam muito: ou bordões de peregrino ou muletas residuais de um milagre de S. Vicente (apesar da falta de apoios para as axilas). É previsível que, mais tarde ou mais cedo, surja entre os historiadores da arte que acham as polémicas indesejáveis, a tese das duas canas de pesca para fazer concorrência aos pescadores do camaroeiro da rainha, mas é menos provável que finalmente se aceite o trabalho esforçado do pintor para conseguir fazer pensar...
E a dupla vara completa bem o catálogo de anomalias que confere ao políptico o seu estatuto único e quase mítico. De algum modo, representa o estádio final da caminhada que tem início no mais visível e inquietante dos mistérios, o espaço escuro do painel dos Frades, por onde se entra. O génio de um inventor de charadas manifesta-se na habilidade em sobrepor sentidos com economia de meios, e a viagem de quem entra e consegue sair pode ser resumida em breves palavras: é-se absorvido pelo buraco negro de um extremo, e sai-se no extremo oposto, como um pobre caminhante exausto, mas armado com o estoicismo dos santos, o ânimo dos profetas, e a solução do enigma nas mãos: o que parece único é dual.

Duas Caras que são Uma
As anomalias mais gritantes estão quase esgotadas, e no topo do painel das varas que parecem uma mas são duas, dois figurantes gémeos, um esvaziado e o outro cheio, mostram a diferença entre o ponto de vista ingénuo e vazio, coberto pelo rendilhado que lhe escapa, e o que absorveu as soluções. Para o primeiro, tratar-se-á simplesmente de dois clérigos muito parecidos (talvez irmãos); para o segundo, porém, o pormenor que interessa é a gigantesca gola vermelha onde nada o pescoço da figura magra: por que razão, em todo o friso de figurantes do políptico, apenas esta figura esvaziada usará uma gola que se distingue de todas as outras pela sua cor berrante e pelo seu tamanho desmesurado? Um caso literal de tuberculose galopante, sem tempo para mudar de indumentária, já que a magreza normal costuma ser acompanhada de vestuário à sua medida? Ou talvez os dois irmãos tivessem trocado as suas indumentárias...» In António Salvador Marques, Painéis de São Vicente de Fora.

Cortesia de Painéis/JDACT