A História é Geográfica
«(…) Antes de mais,
reorganização. Para optimizar a produção rentável é necessário, como toda a
gente reconhece, especializar-se. Para os economistas clássicos, a
especialização é uma escolha feita de comum acordo pelo empresário e o
trabalhador que maximiza as vantagens para todos. Mas no mundo real, como toda
a gente sabe mesmo se se recusa a admiti-lo, a escolha é imposta e é vivida com
muito sofrimento pela grande maioria das pessoas. Talvez que no início dos
descobrimentos o objectivo e mesmo a realidade do comércio fossem a troca de
produtos que cada um dos lados já produzia, a troca mais ou menos igual de um
excedente mais ou menos natural. Mas o comércio rapidamente se inclinou numa
direcção inteiramente diferente. Os que eram mais fortes, e, desde os
descobrimentos, esses eram quase sempre os europeus, impunham uma produção
primária aos povos com quem faziam trocas. Lentamente aqui, mais rapidamente
acolá, a Europa exigia o desenvolvimento de uma produção primária
especializada, diferente segundo as regiões, uma produção das culturas
comerciais (cash crops, como
dizem os historiadores) ou uma produção orientada para a exportação (como dizem
hoje em dia os economistas).
É preciso pensar em tudo
o que implica a criação de uma tal produção primária. Antes de mais, há que
escolher o terreno para a implantação. E normalmente, necessariamente, há que
deixar de fazer uma outra coisa nesse terreno. Esta outra coisa era muitas vezes, talvez sempre, uma produção alimentar
para o consumo local. É necessário, pois, substituir esta produção alimentar
local por uma qualquer importação, por vezes, de uma região vizinha, por vezes,
de terras distantes. E como esta nova produção dos cash crops exige por via de regra trabalhadores mais
ou menos permanentes, bem enquadrados, coloca-se o problema do seu recrutamento
e da sua manutenção, um problema resolvido com muita frequência, pelo menos
durante alguns séculos, pela criação de uma força de trabalho coagida, servos e corveia, escravos, peones, la mita. E como os habitantes locais muitas vezes resistiram
a um tal trabalho, era preciso ou proibi-los de se deslocarem ou importá-los de
outro lado, o que criou outras formas de comércio, o trato de escravos, os
contratados.
Este processo de
periferização das zonas onde eram impostos trabalhos forçados ou coagidos
implicava uma transformação das zonas centrais. Não insistirei sobre os
processos mundiais de industrialização nem sobre a constante transformação de
tudo em mercadoria. É a história do capitalismo enquanto sistema. Assinalo
simplesmente que o resultado, ao fim de 500 anos, é uma polarização global nos
planos económico, social e político, que não cessa de aumentar. Já não existem
zonas relativamente estáveis do ponto de vista cultural. As identidades são
reivindicadas no seio de uma turbulência enorme e perturbadora. Os ódios
inter-étnicos constroem-se através do recurso a uma historicidade que tem uma
existência muito débil. E, geograficamente, as pessoas já não estão de modo
nenhum onde estavam há 500 anos. As migrações sobrepõem-se às radicações ditas
tradicionais. Em segundo lugar,
destruição. Em 500 anos da vida do sistema-mundo moderno, a vida na
Terra transformou-se mais rapidamente do que jamais havia acontecido. Não estou
certo de que possa dizer-se que esta transformação foi maior do que qualquer
uma outra. Mas o que pode dizer-se é que esta transformação criou uma série
mais vasta de perigos à continuação saudável do nosso mundo social do que
qualquer uma outra desde o começo daquilo a que chamamos a vida histórica da
humanidade, por exemplo, destruição em curso da camada de ozono,
enfraquecimento da diversidade biogenética, diminuição na Terra da vida biótica
essencial para a sua regeneração, aquecimento da Terra, e assim por diante».
In
Immanuel Wallerstein, A descoberta da
economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde:
Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69,
2004.
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