O
seu enterro
«(…)
De mais, V. M. já me conhece. Ora se não!... Eu era um que estava de chapéu de
coco, num dos bancos do Aterro, haverá seis anos, uma tarde que V. M. passou de
lunetas fumadas. Por sinal que até lhe mostrei o Diário de Notícias… tenho vinte e cinco anos de idade, lindo talhe
de letra, e dês’que me meteram o ler e o escrever no corpo, ando mesmo
hidrófobo por espatifar um desenvergonhado. Contrataste-me, senhor! Há em mim
um sicário à altura da importância europeia de V. M., e garantias! Fui eu que
atirei a bomba às janelas do rei do Porto, Correia Barros, de combinação com
ele mesmo. Sou portanto um regicida com prática na província, um regicida em
segunda mão, bem conservado, e podendo mostrar abonações como o primeiro. Juro
que não farei questão de preço. Somente, como apesar do meu ódio, eu não quero
que V. M. morra, porque enfim pode vir outro pior, combinaremos a conspirata
por forma que ela revista todas as aparências de séria, sem todavia deixar
d’abexigar-se por dentro, com todas as inofensividades de jocosa. Eu tenho lá
em casa um revólver de níquel, muito lindo, e que é por sinal de cautchuc,
onde, nos meus intervalos de facínora, uso guardar picado de Kentuky.
Se
acordarmos em intrujar a Europa com a comediazinha de onde V. M. há-de sair
ovante e heroicizado, pode combinar-se a coisa para os começos do Inverno, uma
noite ao acabar do teatro… Eu ponho um estalo de entrudo no gatilho da arma; V.
M. mete na boca um zagalote; e quando, sob um jorro eléctrico, puser o pé no
estribo da carruagem, eu do lado, pif! Páf! E deito a fugir, enquanto V. M. cai
nos braços dos seus oficiais, não sem primeiro entornar sobre a camisa um
frasquinho de tinta carmesim. Atenta a cor da tinta, e o facto de V. M. cuspir
a bala no delíquo, os médicos não se recusarão, creio eu, a jurar sobre os
Evangelhos, que V. M. foi ferido… Entanto, neste tão fácil plano, só um temor
me alanceia: Com a bravura que todos lhe conhecem, V. M. é capaz de morrer de
susto, mesmo tendo a certeza de não ter morrido, de tiro». In Os Gatos, 31 d’Agosto de 1889.
Em
19 de Outubro, pelas 11 horas e 5 minutos da manhã, morte de S. M. o rei Luís I,
no palácio de Cascais. Desde muito se previa desfecho trágico à enfermidade do
pobre agonizante, cujos últimos meses foram um martírio cruel de todas as
horas, quer latejando nas garras da tortura física, quer nas da intriga
palaciana, de sobejo por ele adivinhada através das consolações ambíguas dos fâmulos,
aborrecidos já de tantas noites perdidas ao derredor da sua paralisia. A doença
do rei foi uma coisa obscura para todos, e acerca dela mil contraditórias
versões, vieram correndo as folhas dos periódicos, versões, que uns atenuavam,
e exageravam outros, conforme o interesse partidário ou pessoal ligado à
conservação ou aniquilação do soberano». In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre
as Vantagens de ser Assassinado, Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-37-1441-8.
Cortesia
de Assírio Alvim/JDACT