«Uma narrativa
fantástica de como surgiu a ordem dos Jesuítas, bem como a história de seu
fundador, Ignácio de Loyola. Suas tramas de controle de poder, formas
corruptas para alcançá-lo, e manter a todo custo a riqueza adquirida por meio
de embuste e traições. Estamos na parte mais rude e montanhosa da selvática
província de Catalunha. A capital desta província, a rica e populosa Barcelona,
é o centro de comércio, de literatura e de patriotismo, como não encontra
segundo em nenhuma cidade da Europa; mas, mal saem as portas da cidade, acha-se
a gente logo no reino do deserto, e principiam a encontrar-se os seus sombrios
habitantes; o mendigo e o salteador.
Claro está que não falamos da Catalunha moderna, que não é inferior a nenhuma
outra província de Espanha pela sua civilização adiantada e liberal. A acção do
drama, que vamos narrar passou-se há três séculos e meio, remontando ao
terrível começo do século dezesseis, e aos princípios dessa luta religiosa, que
deve fazer correr rios de sangue em toda a Europa. O dia caminhava para o seu
termo; os últimos raios do astro luminoso douravam os cimos de Montserrat,
áspera montanha que se ergue para o céu a vinte e quatro milhas de Barcelona.
O monte tem em catalão o
nome de Serrat, do latim Serratus. Afirmam os etimologistas que
os romanos deram aquele nome à montanha em razão dos seus flancos escarpados,
que se assemelham aos dentes de uma serra, em latim serra. Como quer que
seja, no princípio das conquistas dos francos na Espanha, e, portanto,
no tempo de Carlos Magno, alguns monges fundaram a meio da encosta um mosteiro,
que se chama Abadia de Montserrat. Este
mosteiro foi sucessivamente enriquecido pelos condes de Barcelona e de
Catalunha, pelos reis de Aragão e pelos reis de Espanha, à medida que os
membros esparsos da nobre nação se reuniam para formar um só estado. É certo
que alguns boatos, que corriam naquelas imediações, provavelmente espalhados
por inimigos, punham um tanto em dúvida os sentimentos ortodoxos dos frades.
Uns, acusavam-nos de terem conservado no fundo do coração os vestígios daquele arianismo, que, depois de ter sido a
religião oficial dos visigodos, fora afinal extirpado pela hipocrisia dos
bispos e pela espada dos francos. Outros, afirmavam que no temido
convento tinham encontrado refúgio as ideias donatistas, que vieram da África,
vizinha da Espanha, heresia que a Igreja destruiu a ferro e fogo, visto não
poder vencê-la pela lógica dos argumentos. Por último, a versão que merecia
mais crédito era a que afirmava que no convento de Montserrat se tinham
refugiado os últimos templários, ordem militar e religiosa fundada para
defender o Santo Sepulcro, e que fora destruída por Felipe o Belo, rei de França, com o fim de se
apropriar das suas imensas riquezas.
Filipe o Belo tivera por cúmplice naquele
sanguinolento roubo o papa Clemente VI, um francês que ele fizera eleger
papa só para que o auxiliasse naquele saque; e o pontífice, para com mais
segurança ferir os infelizes templários, e os punir pela maior das suas culpas,
a de serem riquíssimos, acusara aqueles desgraçados de heresia. Os Templários
foram saqueados, presos, assassinados, e o seu Grão Mestre, Jacques de Molay,
foi queimado vivo; mas antes de morrer, o infeliz levantou para o céu as mãos inocentes,
e suplicou a Deus que no período de um ano e um dia chamasse ao seu tribunal, para
julgamento eterno, o papa e o rei. O Onipotente ouviu aquela prece, e no prazo
fixado os dois cúmplices morreram. A morte de Filipe ocorreu em tais
circunstâncias, que o povo julgou ver nela o sinal evidentíssimo da cólera de
Deus. Andando um dia à caça, caiu do cavalo, e os dentes de um javali rasgaram
as vísceras do rei assassino. O papa morreu também no mesmo ano, e todos viram
naquela dupla morte o castigo; haviam merecido os dois criminosos.
À morte de Jacques
Molay e dos seus companheiros seguiu se uma perseguição geral contra os
Templários, muitos dos quais se refugiaram nos países de que eram naturais, principalmente
nas províncias italianas e espanholas. Alguns destes acharam refúgio entre os
monges da abade de Montserrat, já eivados, segundo se dizia, das mesmas
heresias e tanto o papa, como os bispos de Carteia e da Catalunha estavam
irritadíssimos contra aqueles frades, e muitas vezes tinham tentado suprimi-los.
Mas os monges, já poderosos pela riqueza e pelos domínios eram poderosíssimos
pela popularidade de que gozavam. Naqueles
rochedos da Catalunha, país clássico das revoluções, ninguém atrevia a
assaltar um mosteiro, que ao primeiro sinal se ver rodeado de milhares de micheletti de armas infalíveis.
Por modo que, por vontade ou por força, os superiores da Igreja deixariam
tranquilos os frades de Montserrat. E agora, que com esta breve digressão
expusemos as conexões da Espanha e da Europa naqueles tempos, é ocasião de faz
entrar em cena os principais personagens desta verídica história.
O Peregrino
Um homem ainda novo, apesar de o rosto emagrecido mostrar
ter ele mais idade do que realmente tinha, subia vagarosamente a encosta do monte. Era evidente que se dirigia para o
mosteiro. Na ampla e cómoda estrada, que os frades tinham construído desde a
falda do monte até à abadia, o peregrino encontrara no seu percurso bastante
pessoas. A abadia era um lugar de peregrinação tão venerado e concorrido, que
não era maravilha encontrarem-se naquele caminho muitos peregrinos a toda a
hora do dia. E contudo, nenhum dos que encontravam aquele homem o saudava,
nenhum lhe dirigia aquele cordial Salve-o
Deus!, que os espanhóis dirigem a toda a gente, que encontram nos caminhos,
por mais humilde que seja a sua condição. Pelo contrário, todos os que
encontravam o nosso personagem arredavam-se dele com visível expressão de
terror. Dir-se-ia que sobre aquele desventurado pesava uma maldição, cujos
terríveis feitos todos procuravam evitar. Qual seria a razão porque aquele
estranho personagem assim se via desacompanhado não só da simpatia, que reúne
os amigos, nas até aquela espécie de piedade, que não é costume negar-se mesmo
aos indiferentes? Decerto não era por causa da sua figura. O
desconhecido era de uma nobre e bela estatura, de membros bem proporcionados,
pesar de emagrecido por longos jejuns. No modo como vestia o humilde hábito do
peregrino adivinhava-se claramente o homem, que noutros tempos usara com
soberba desenvoltura as nobres vestes de cavaleiro. O nosso personagem coxeava
um pouco da perna esquerda, nas decerto não era esse o motivo que causava tanta
repugnância aos outros peregrinos, pois naqueles tempos de guerra encarniçada e
incessante era mais para admirar ver-se um homem e sem defeitos, nem
ferimentos, do que um estropiado, e a montanha de Montserrat era decerto o
lugar onde menos admiração e estranheza devia causar o encontro de um homem
coxo.
De facto, a estrada que conduzia à igreja do mosteiro estava cheia de
coxos, de aleijados e de cegos, que diariamente se dirigi ali, a pedir à
miraculosa imagem de Nossa Senhora de Montserrat um alívio aos seus males. A
causa do estranho efeito, que nos montanheses catalães produzia à vista do
peregrino, devia ser a singular expressão que este tinha no olhar. E na
verdade, ao passo que os traços da fisionomia do estrangeiro eram belos e
regulares, respirando até certa nobreza, os olhos tinham um fulgor sinistro, um
olhar penetrante e ameaçador, que gelava o sangue a quem o observava. Naquele
olhar havia ao mesmo tempo a expressão de um juiz inexorável e de um condenado sem
esperança. Ao fitá-lo, adivinhava-se naquele fogo sinistro, que lhe animava o
olhar, uma severidade sem limites e uma série de tormentos sobre-humana
infligidos sem piedade a um homem cuja duríssima têmpera de ânimo o tornava
mais apto do que qualquer outro para sofrer. Dir-se-ia que era um condenado, ao
qual um imperscrutável decreto de Deus tivesse feito sair dos horrendos abismos
do inferno para vir julgar os outros pecadores, sem por isso ter obtido mínimo
alívio para os seus próprios tormentos». In Ernesto Mezzabota, O Papa
Negro, História da Europa Medieval e seus costumes, tempo da narrativa; entre
1500 -70 d. C, 1848, Rio de Janeiro, 1947, corrigido por Milton Barros Carvalho, Brasil, 2009.
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