«O estudo do fenómeno
conhecido como Cruzadas, é uma tarefa muitas vezes difusa, devido a toda
a mística que envolve o tema, devido à recente produção literária que aborda o assunto
e a filmografia que tem valorizado os épicos históricos, debruçando-se sobre os
conflitos medievais entre cristãos e muçulmanos, séculos antes dos entraves
contemporâneos, mostrando que o assunto ainda gera interesse e fascínio entre o
público leigo. Ao observarmos este fenómeno, a partir do momento em que ocorre
dentro dos domínios da Cristandade, como no episódio da cruzada albigense,
percebe-se a singularidade e complexidade em buscar apreender elementos que
esclareçam ou ao menos auxiliem na clarificação das motivações e personagens
envolvidos num conflito desta magnitude. Para tanto, a análise da cruzada será
realizada através da trajectória do líder cruzado, o conde Simon de Montfort,
na medida em que, através de sua singularidade, é possível verificar elementos
que transpassem a própria cruzada. Entre estes elementos é possível citar, por
exemplo, o desenvolvimento de dois projectos expansionistas antagónicos entre a
região norte do território conhecido hoje como França, e o reino de Aragão, na
Península Ibérica.
Proponho a análise de
alguns elementos pertinentes ao contexto relativo ao tema, seguido de um olhar
mais aproximado da fonte documental intitulada Histoire Albigeoise, escrita pelo monge cisterciense Pierre
des Vaux de Cernay. Desenvolvida no formato de crónica, entre 1213 e
1218,
é o documento considerado pela historiografia contemporânea como a matriz da visão oficial do conflito.
Pierre era o sobrinho de Guy, abade do mosteiro de Vaux de Cernay, no sudoeste
de Paris, fundado por Simon de Neauphle em 1118
ou 1128. A Histoire Albigeoise é uma fonte escrita por um
clérigo em formato de crónica como uma elegia a um vassalo real. Entender estes
elementos, ou seja, as razões para a escrita da obra e para a exaltação da
figura de um personagem que estava à sombra do rei tendo como pano de fundo a cruzada
albigense e o contexto europeu do século XIII. Para tanto, será necessário
deslocar o foco da cruzada e dos hereges apenas, e analisar figuras como o papa
Inocêncio III, o rei Felipe Augusto e o rei Pedro II, o católico, numa intrincada rede de acções
políticas e projectos antagónicos que auxiliaram na formação da geografia
política da Europa. A realização de uma leitura que busque uma visão da obra do
monge Pierre de Cernay que não contemple apenas a cruzada albigense ou
as doutrinas dos hereges, é a contribuição para a historiografia. A elevação de
Simon de Montfort a um papel central dentro da crónica eclesiástica de
Pierre levou-nos a conectá-la à formação da proposta de unificação do reino
francês, tão díspar no seu território, como a cruzada e a heresia mostraram
ser. A necessidade de um modelo de vassalagem, fé católica, fidelidade ao rei e
coragem, faz da Historia Albigeoise
uma obra em certa medida de cunho didáctico, tanto para os habitantes do
norte, quanto para os habitantes do Languedoc, que em termos culturais e
sociais estavam muito mais associados ao reino de Aragão, que aos domínios de
Filipe Augusto.
De acordo com a pesquisa
realizada, dividimos em três capítulos principais, os quais vão tratar
respectivamente: O argumento legitimador, qual seja a heresia
cátara; As personagens, onde discutimos a respeito dos papéis de
Filipe Augusto e Inocêncio III no conflito e a existência de um projecto da
monarquia francesa apoiado pela Igreja Romana que visava expandir os territórios
do norte buscando uma saída para o mar Mediterrâneo; e uma análise da figura
de Simon de Montfort. Esta análise acontece em quatro pontos
específicos, a descrição de sua participação na cruzada albigense, suas
características físicas, cristãs, nobres e como estas características, na obra
de Pierre, corroboram para nossa hipótese de criação de um Vassalo Perfeito que serviria de
exemplo tanto para a os servos de um pretenso reino francês unificado, como
para a Igreja. Para o primeiro ponto, o desenvolvimento das heresias no
contexto europeu dos séculos XII e XIII, optamos por dois trabalhos principais:
Heresias Medievais de Nachman Falbel e Reforma na Idade Média, de
Brenda Bolton. Na primeira obra, Falbel traça uma síntese das principais
heresias que obtiveram repercussão frente à cristandade durante período
medieval, como por exemplo, os
cátaros, valdenses, beguinos e pseudo-apóstolos. O autor também
apresenta clérigos saídos das ordens monásticas que questionavam dogmas da
doutrina cristã, como por exemplo, Pedro de Bruys, que negava a santa missa, o baptismo
de crianças, a cruz enquanto símbolo tradicional do cristianismo. Além de
atentar apenas para a própria descrição dos acontecimentos, é importante
perceber como o autor entende os conceito. A principal contribuição de Falbel
está na sua explicação para o conceito de heresia: A palavra heresia
(do grego hairesis, hairen, que
significa escolher) acompanhou a vida da Igreja desde os inícios e, para
os escritores eclesiásticos o termo designava uma doutrina contrária aos
princípios da fé oficialmente declarada.
O autor distingue as heresias ocorridas entre os séculos XII e XIII
daquelas ocorridas no início do cristianismo como religião oficial no Ocidente,
dizendo que estas possuíam um carácter filosófico e teológico, onde os dogmas
cristãos eram submetidos ao crivo racional, enquanto as heresias da Idade Média
possuíam enquanto características, [...] um cunho popular assente sobre
uma nova visão ética da instituição eclesiástica e do cristianismo como
religião vigente na sociedade ocidental. Quando retratar o conceito heresia,
estarei à visão do autor, de que as heresias medievais mobilizavam tanto
clérigos quanto camponeses e até senhores, num contexto propício para mudanças,
sejam elas intelectuais, económicas ou sociais. Esta percepção está de acordo
com a historiografia mais recente sobre o tema». In Eduardo Luís Medeiros, Simon
de Montfort, A figura do Vassalo Perfeito, História Albigeoise, Pierre des Vaux de Cernay, Ciências
Humanas, Letras e Artes, UF do Paraná, Curitiba, 2006.
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